sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Rituais e costumes eslavos presentes até hoje na Polônia

Zofia Stryjeńska, Bożki słowiańskie (Deus eslavos)
Foto: Andrzej Chęć / cortesia do Museu Nacional em Cracóvia
Para celebrar a colheita, o fogo, a água, nascimento, cerimônia de casamento ou morte, os eslavos sabiam como marcar cada dia e noite.
Muito da alma eslava ainda permanece intacta entre os polacos.
Há muito, muito tempo atrás, existia um povo que vivia de acordo com a natureza e seus ritmos. Era um povo justo, que compartilhavam com estranhos, e que amava a liberdade, a quem a ideia de poder era completamente estranha...

Este trecho não é de um conto de fadas, mas uma breve descrição dos antigos eslavos, segundo Leszek Matela, em seu livro "Tajemnice Słowian" (Os Segredos dos eslavos).
No auge de sua expansão em torno do séculos 6º e 7 º d.C., eles habitavam uma área entre os rios Odra, Elba e Saale, um caminho desde a península da Jutlândia, no Oeste, que se estendia até aos Balcãs, bem como os territórios atuais da República Tcheca, da Morávia, da Hungria, da bacia do rio Dnipro e do Volga no Sul. Apesar de suas diversas línguas e diferenças regionais, todos eles compartilhavam costumes semelhantes, ritos e crenças.

Um começo digno para o ano

Cantorias natalinas na região de Podhale, Bucovina, Tatras, Foto: Adrian Gładecki / East News
O calendário de férias eslavos começa no dia 21 de dezembro, com uma vitória simbólica da luz sobre as trevas (o Solstício de Inverno). O "Święto Godowe" (festas nupciais), também conhecido como "Zimowy Staniasłońc" (estação invernal) e termina em 06 de janeiro, e que deve ser preenchido com música.
A alegria por dias cada vez mais longos e quentes era celebrada com cânticos chamados de "kolędy" (o equivalente polaco para canções). Boa sorte devia ser assegurada com visitas a amigos em uma forma de procissão ritual.
A árvore da vida era colocado dentro das casas, e este consistia de um maço ou visco - as árvores de Natal de pinheiros só apareceram muito mais tarde. No primeiro dia de inverno, as almas dos mortos também eram lembradas - fogos eram acesos em cemitérios, a fim de aquecê-los (mas também com o intuito de auxiliar o sol na sua luta contra a escuridão), e festas especiais chamadas de "tryzny" eram realizadas.
Naquele dia, o tempo para do próximo ano tinha sido previsto, assim como o do futuro. Com o passar dos tempos, estas núpcias foram absorvidas sob interpretação cristã. Por que então, os católicos celebram o Natal no dia 25 e não em 21 de dezembro? Bem, na Roma antiga, esta data era consagrada ao deus sol (Sol Invictus), dos quais Constantino - o Grande era um seguidor.
Diz-se que depois de se converter ao cristianismo, o imperador "batizado" fez desta festa pagã uma só, reunindo assim as duas religiões.

A promessa da primavera

O afogamento de uma boneca Marzanna de 10 metros em Jeziorzany, Polônia 2014,
Foto: Jacek Świerczyński / Forum
Outros costumes com raízes pagãs inclui o afogamento da boneca Marzanna, os ovos decorados, o "śmigus dyngus" e até mesmo a limpeza da primavera. O renascimento das forças da natureza tinha que ser comemorado com um estrondo e então "Jare Święto" foi criada em 21 de março.
Houve numerosas formas de celebrar este dia. Alguns vestiam uma boneca de palha com roupas brancas, e adornavam sua cabeça com uma coroa feita com galhos de espinheiro-alvar. A boneca Marzanna desfilava ao redor da aldeia acompanhada pelo som de chocalhos, para ser finalmente queimada ou afogada, significando assim o adeus à morte e à doença.
Outros decoravam ovos como um símbolo do renascimento da vida. Desenhos eram feitos na casca com cera derretida, colorindo com marrom ou vermelho obtido por meio da imersão dos ovos em um prato com casca de cebola ou ocre. Este costume tem suas raízes na Pérsia (o que confirmaria uma das teorias sobre a descendência de eslavos), onde as pessoas eram curadas com ovos e magias e assim exorcizados, movendo os ovos sobre todo o corpo.

Durante o "śmigus-dyngus" as moças são molhadas com água
Foto: Marian Zubrzycki / Forum
Todos os membros da família tomavam parte nos preparativos para a chegada da primavera. Os quartos foram limpos e ventilados, mulheres assavam bolos, os homens acendiam fogueiras no alto dos morros, os meninos e meninas traziam ramos de candelila (arbusto) que eram reunidos em grupos especiais iluminados - o equivalente das posteriores Palmas de Páscoa. Estes eram uma parte indispensável do ritual para limpar o mal das pessoas. A família e amigos atacavam uns aos outros com estes ramos.
A água também tinha qualidades de purificação, por isso as pessoas também derramavam-na em abundância sobre os outros. Os dois costumes que estavam inicialmente separados gradualmente se uniram e é assim surgiu o "śmigus dyngus", tradição conhecida e celebrada até hoje.

Kupalnocka - Dia dos Namorados

Noc Kupały (Noite Kupała - Festa de São João), Przemyśl Foto: Waldek Sosnowski / Forum
"O eslavo Dia de Kupala era o mais longo do ano, Kupala tinha a noite mais curta e era uma passagem incessante de alegria, música e gente pulando", escreveu Józef Ignacy Kraszewski em sua "Stara baśń" (Contos antigos).
Mas, para os eslavos, apenas uma noite de festa, definitivamente não era suficiente. As celebrações começavam no dia anterior ao Solstício de Verão (20 de Junho) e durava quatro dias.
Era antes e acima de tudo uma celebração de fogo e água. Enormes fogueiras eram acesas no alto dos morros usando para isso, apenas dois pedaços de madeira - que eram pensados para fortalecer os participantes do ritual e garantir a fertilidade dos campos, bem como dos animais.
Ficavam dançando e cantando ao redor das fogueiras, ou saltavam sobre a fogueira para garantir a purificação e proteger contra as más energias. Acreditavam que o segundo destes elementos também possuía poderes curativos.
O período de três meses de abster-se de tomar banho (era proibida a imersão do corpo em rios, lagos e córregos durante o dia) oficialmente terminou e a lavagem ritual durante a Noite Kupala era feita para afastar doenças e malefícios. As meninas usavam grinaldas de flores e ervas, que depois eram lançadas ao rio. Se algum dos meninos pescava uma grinalda e depois encontrava a dona original dela, os dois se tornavam um casal. Habitualmente era permitido nesta noite, que eles tivessem sua iniciação sexual - e, portanto, diziam que este era o "Dia dos Namorados dos eslavos".

A internacional Noite de São João em Piła, Foto:Sławomir Olzacki / Forum
Segundo a lenda, samambaias floresciam na Noite "Kupala". Se alguém tivesse a sorte de encontrar uma destas samambaias ficaria rico, e também diziam que era capaz de se tornar invisível em caso de perigo.
Flores de camomila também foram usadas para atrair fortuna, e até mesmo os talos de endro (donzelas marcavam-nos com fios coloridos com os nomes de seus meninos favoritos - o talo que crescesse durante a noite era uma prova do mais apaixonado).
Esta festa era tão fortemente enraizada na tradição eslava que as autoridades da Igreja decidiram transformar o ritual pagão numa parte do calendário cristão - a Noite Kupala agora é conhecida como a Noite de São João e ocorre no dia 24 de junho.

Os históricos festivais da colheita "dożynki"

O Dożynki. Moças : mulheres carregam coroas feitas unicamente de plantas cultivadas - Spała, Foto: Adam Chełstowski / Forum
No primeiro dia de outono é comemorada a festa da colheita "Święto Plonów", em que os preparativos já começavam em agosto. Após o término da colheita, um par de hastes sem cortes eram deixadas no campo. Elas eram conhecidas como barba (broda) e eram deixadas para que o solo não fosse inteiramente privado dos grãos.
Uma parte da colheita também era armazenada em um Santuário. Poucos dias antes das principais celebrações um copo de licor de mel - uma bebida sagrada eslava, que tinha passado por uma fermentação muito parecida com a do vinho - era colocado na frente de uma estátua de Świętowit, o deus da guerra e da fertilidade.
Se em alguns dos copos, a bebida desaparecia, eles sabiam que tinha sido tomado por um mau oráculo, assim um copo era colocado à esquerda bem cheio até a borda para prever uma colheita abundante.
Agradeciam os deuses pela colheita durante estas festividades, com orações para que ainda melhores festas se realizassem no ano seguinte. Grinaldas enormes eram feitas e bolos especiais chamados "Kołacz" (pronuncia-se couatch) eram assados ​​especialmente para a ocasião. Tradicionalmente, um padre colocava o magnífico "Kołacz" entre ele e as pessoas, e perguntava se ele podia ser visto atrás dele. Se ele tinha sido capaz de se esconder, era sinal de prosperidade. A  tradição popular da festa da colheita resistiu ao tempo sob a forma de "Dożynki", que ainda é comemorado até os dias de hoje, geralmente em um dos domingos de setembro, depois que todas as culturas foram colhidas.

Para as almas dos velhos

Dois coveiros que tem seu almoço no cemitério.
Esta é uma cena do filme "Fucha" de Michał Dudziewicz
Foto: Estúdio Filmowe "Kadr" / Filmoteka Narodowa, www.fototeka.fn.org.pl
Após a morte, pensava-se que as almas viajavam para a terra da felicidade eterna - Nawia. Elas gostariam de voltar para o mundo dos vivos algumas vezes durante o ano, assim elas deveriam ser devidamente recebidas.
Rituais ligados aos antepassados ​​- ao "Dziady" - tinha lugar em conformidade ao princípio de que os espíritos poderiam fazer favores para os vivos - como ensinar-lhes lições de moral - e os vivos poderiam pedir favores aos mortos - assim surgiu o costume de oferecer alimentos e bebidas nos cemitérios. Fogos eram acesas em cemitérios e "grumadki" especiais (pedaços de madeira) eram colocados em encruzilhadas, a fim de apontar o caminho de volta para o céu. O tributo era pago através de torneios, música e dança.
Em algumas regiões da Polônia, o costume de alimentar as almas ancestrais era praticado até o início do século 20. A cristianisação resultou na limitação das festas dos mortos e, finalmente, são realizadas apenas uma vez por ano - no dia primeiro de novembro (no Brasil é dia de Todos os Santos) para que no 02 de novembro (dia de finados no Brasil) os polacos possam comemorar o "Zaduszki". Esta é uma relíquia da cerimônia pagã "Dziady" que é a festa "Rękawka", que deriva seu nome de um montículo feito pelo homem em que os ovos ficam enrolados, como um símbolo da ressurreição. Esta festa ainda é comemorado hoje em dia Cracóvia.

Nova vida

Uma criança em um berço, 1960,
Foto: Chris Niedenthal / Forum
A maior festa na vida de uma família era o nascimento de um bebê. Mas uma nova alma eslava também era ansiosamente aguardada por demônios. Por esta razão, fitas vermelhas eram amarradas no berço a fim de amarrar feitiços ruins e ferramentas afiadas eram colocados sob a cama ou no limiar. Espinhos ou plantas espinhosas eram colocadas em torno dos vidros da janela junto com o sal e alho e e algo aceso era deixado queimando no quarto durante todo o dia.
E a fim de enganar os espíritos maus, às vezes, fingia-se que o bebê tinha morrido. Logo, antes do parto, as mulheres eram conhecidas recorriam ao deus "Rod" e suas ajudantes "Rodzanice", pedindo-lhes saúde para a criança.
Os eslavos acreditavam que na noite após o nascimento, três divindades apareciam para decidir sobre a fé do bebê, fazendo sinais na testa, invisíveis ao olho humano.
A fim de pleitear com as "Rodzanice", porções especiais de pão, queijo e mel eram deixados para eles. Outras mulheres da família também eram convidados para servirem cereais.

A idade dos homens

"Postrzyżyny ziemowita" (Mieszko I),
Reprodução: Piotr Mecik / Forum
Enquanto o peso de organizar a maioria das celebrações de festas e ritos era democraticamente compartilhado por todos, independentemente do sexo, o "postrzyżyny" era um rito apenas para os meninos.
Quando um rapaz encerraca seu 12º ano (algumas fontes indicam a 7 ou 10 anos), seu cabelo era cortado pela primeira vez. Esta passagem simbólica da criança para a idade adulta era feita pelo pai, que a partir daquele momento assumia a responsabilidade de criar seu filho (ele teria sido previamente cuidado unicamente pela mãe, enquanto a filha permanecia com a mãe até o casamento). Era durante este ritual que o menino recebia seu nome próprio como o atribuído em seu nascimento com a função de protegê-lo contra os maus espíritos - o "strzyi" - e fantasmas.
A partir do "postrzyżyny" e dali por diante, o pai considerava oficialmente um menino como seu filho. A cerimônia era acompanhada por música e festa para toda a família.
O mais provável é que tão tarde quanto o século 18, esse rito ainda simbolizava o momento em que submetendo-se à vontade e autoridade de uma pessoa que lhe cortava o cabelo o filho reconhecia o pai.

E que não vou deixar você...

Uma cena do filme de Waldemar Podgórski,
"Pójdziesz ponad SADEM" (Você passará a Orchard) de 1974,
Foto: east News
Nos velhos tempos, o casamento constituía um contrato amigável, livremente pactuado entre as famílias, e o rapto de uma donzela era apenas um jogo encenado.
As meninas iriam se casar tão cedo quanto os 14 anos de idade, e a despedida simbólica de sua virgindade ocorria como parte do "rozpleciny", literalmente destrançar.
As meninas trançavam o cabelo da noiva em uma trança decorada com ramos, flores e fitas, enquanto cantavma canções de luto. A procissão do casamento chegava à casa e o capataz, o primeiro homem, ou o irmão da moça tinha que desfazer a trança. O noivo também tinha sua despedida de solteiro, mas os detalhes não são conhecidos.
O casamento - swaćba - tinha lugar no dia seguinte. Má energia deveria para ser expulsa, caminhando-se através de um portão, em que era colocado em seu limiar um machado apontando para o pátio. Os votos matrimoniais era trocados na presença de um "Żerca" (casamenteiro).
O jovem casal era recebido com sal e pão. Compartilhando o bolo "Kołacz", dançavam, bebendo licor de mel e continuavam assim até o fim...

Uma cena do filme de Zbigniew Kuzminski "Nad Niemen" (Sobre o rio Neman), 1986
Foto: Filme Nacional / www.fototeka.fn.org.pl
O casal era abençoado para ser especialmente protegido na noite de núpcias, e por isso era colocado um machado sob a cama dos recém-casados.
Isso também se destinava a garantir que um menino seria concebido, porque só um progenitor masculino era sinal de aceitação da esposa pelos espíritos da casa, e, portanto, também pela família do marido. Mas havia também o outro lado da moeda, descrito por Ibrahim ibn Jakub: "Se alguém tem duas ou três filhas, elas se tornam a base da sua riqueza, e se eles são filhos, então ele cresce pobre". Tudo isto devido ao dote que os pais do noivo pagaram aos pais da noiva.
Ao contrário de semelhanças, a virgindade não era muito valorizada na época, pois significava que a menina não tinha sido apreciada pelos rapazes. Uma donzela com uma criança era muito desejada, era como um sinal de fertilidade. Se um homem queria divorciar-se de sua escolhida, ele poderia fazê-lo, mas, em seguida, ele também perdia seu dote.
Esposas eslavas eram muito apegadas a seus maridos, e testemunhos escritos de escarificações (série de arranhões ou pequenas incisões praticadas sobre a pele) eram infligidas a si mesmas depois de testemunhar a morte de um marido.

… até que a morte nos separe

Berenice Kowalska,
"Dzwoneczek loretański i przewrócone stołki"(Sininho Loreto e mesas viradas)
em cartão de 34x46 cm, a lápis, 2012,
Foto: Cortesia do artista
Os falecidos eram homenageados e suas almas eram ajudadas em seu caminho para o Nawia, que era governado por Weles. Os corpos dos eslavos eram normalmente levados através das janelas, e um machado afiado era colocado no limiar para que a alma morta para não voltasse para casa.
Faziam seus cemitérios à beira de rio ou lago pois acreditavam que assim era fornecida uma proteção extra - a água constituía uma barreira natural para as almas que poderiam perturbar a vida.
Os mortos eram vestidos com roupas de festa, com jóias e às vezes até mesmo armas, e então eles eram envoltos em lona branca. Depois das orações, o corpo era colocado em uma estaca ardente, porque só o poder purificador do fogo permitiria uma passagem para a terra de Nawia.
As cinzas eram fechadas em vasos de barro chamados "popielnice" e em tempos mais antigos eram enterrados sob a porta de entrada da casa. Acreditava-se que a alma defenderia os moradores e purificaria os convidados - é por isso que os polacos ainda não cumprimentam uns aos outros sobre o limiar da porta de entrada.
Uma parte importante da cerimônia do funeral eram as festas, chamadas "strawa", na tradição polaca e a partir do século 16 em diante, o "Stypa Latina". Elas tinham lugar várias vezes, quer nos 40 dias ou um ano após a morte.
Esta forma de homenagear os mortos foi continuada no ritual "Dziady". Na Rutênia (Nação da atual Ucrânia), aconteciam corridas especiais, lutas-livres e danças também eram organizadas para a ocasião.
Os eslavos acreditavam em um certo tipo de reencarnação. Eles imaginavam o mundo como uma árvore cósmica, no coração estava uma terra mágica, onde as aves encontravam refúgio no inverno.
"Wyraj" - um pássaro celestial de um metro ou uma cobra - era localizado logo acima de Nawia. Havia contos de um jardim além de um portão de ferro guardado pelo Galo de Ouro ou "Rarog", o pássaro de fogo.
Almas que tinham ido para o paraíso iriam voltar para a terra e nos ventres das mulheres - com a ajuda de cegonhas e frascos noturnos na primavera, e corvos no inverno. Assim, a teoria de que as crianças são trazidos pela cegonha não é sem razão!

Texto: Agnieszka Warnke
Traduzido por Ulisses Iarochinski

Fontes:
Leszek Matela "Tajemnice Słowian" ("The Secrets of eslavos"), Białystok 2005;
"Mały słownik kultury dawnych Słowian" ("Um Pequeno Dicionário da antiga Cultura eslava"), editado por Lech Leciejewicz, Varsóvia, 1972;
Aleksander Gieysztor "Mitologia Słowian" ("A Mitologia dos eslavos"), Varsóvia 2006;

slowianie.republika.pl;
religiaslowian.wikidot.com;
slowianowierstwo.wordpress.com.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Também tu, Polônia? — ou os riscos dos radicais à deriva

Edifício da Câmara dos Deputados - SEJM - em Varsóvia
O fato político mais relevante dos últimos tempos é obviamente a situação política saída das eleições polacas. E que só será ultrapassado pelo resultado das eleições espanholas do Natal que, a julgar pelas sondagens mais recentes, se traduz num empate entre o PP, o PSOE e o Ciudadanos.
As eleições na Polônia trazem duas grandes novidades: pela primeira vez, um só partido foi capaz de obter uma maioria absoluta de lugares nas duas câmaras do parlamento e, pela primeira vez, não há qualquer força de esquerda no Sejm. A primeira novidade interessa mais à política interna, a segunda interessa, e de sobremaneira, à política europeia e à política comparada.
A vitória com maioria absoluta dos conservadores, de pendor eurocéptico e nacionalista, do partido Direito e Justiça (PiS) é causa de desconfiança nos foruns europeus. Na sua experiência anterior de governo (2005-2007), liderada pelos gêmeos Kaczyński, a tensão com a União Europeia e com a Federação Russa foi especialmente visível.
A linha política dominante foi então de conservadorismo popular ou populista, profundamente antiliberal, muito nacionalista e com laivos de fundamentalismo católico e moralista, cujo “braço armado” era (e continua a ser…) a omnipresente Radio Maryja.
A verdade é que, no novo contexto político-eleitoral, o PiS, sem mudar de liderança – que continua nas mãos do gémeo sobrevivente, Jarosław Kaczyński –, levou a cabo uma profunda renovação dos protagonistas políticos. E assim fez eleger nas presidenciais o seu candidato, claramente mais moderado e menos radical, Andrzej Duda. E apresentou como candidata ao lugar de Primeira-Ministra, a chefe de campanha deste último, Beata Szydło, com um perfil mais temperado e menos histriônico.
Não falta quem diga que Kaczyński acabará por tirar o tapete à sua herdeira e por vir, mais tarde ou mais cedo, a ser de novo entronizado como Primeiro-Ministro. Para já, um tal temor não passa de simples especulação.
A grande dúvida é, por conseguinte, a de saber se o caminho que o PiS vai querer trilhar é a via húngara da “orbanização” do regime – sugerida pela linha dura dos anos 2005-2007 – ou a via conservadora “à inglesa”, já que o Partido Conservador é o seu mais importante parceiro europeu – via esta indiciada pela escolha de novos rostos moderados.
O caminho da “orbanização” – sustentado pela admiração nutrida pelo carisma de Viktor Orban e pela aproximação nacionalista dos restantes países do grupo de Visegrado (Polônia, Hungria, Eslováquia e República Tcheca) – consubstanciar-se-ia na tentativa de domesticação do sistema judicial e do mundo mediático, numa maior estatização da economia, num reforço das políticas sociais de distribuição, num dogmatismo moral de cariz religioso e num nacionalismo exacerbado de matiz xenófoba.
Só se distinguiria do trilho húngaro na relação com a Rússia de Putin, que, ao invés do caso magiar, seria e será decerto muito tensa e hostil. A via conservadora britânica, que tenho como mais provável, virar-se-ia essencialmente para um distanciamento da Europa, apoiando a reivindicação de uma alteração dos tratados e de uma renacionalização das políticas comuns e execrando qualquer política de acolhimento de refugiados ou migrantes de fora da Europa.
A divergência com a linha britânica surgirá decerto na questão maior da liberdade de circulação dos cidadãos da União, por causa da enorme quantidade de trabalhadores polacos emigrados no Reino Unido.
Esta linha democrática conservadora, apesar das promessas eleitorais de sinal estatizante e social, acabaria por dar sequência à política econômica de sucesso dos governos da Plataforma Cívica, agora derrotada, para poder tirar proveito do mercado interno europeu e do forte investimento estrangeiro presente em território polaco.
Estas promessas de reforço das políticas sociais (mais abono de família, diminuição da idade de aposentadoria, etc.) tiraram espaço à Esquerda, que foi varrida do mapa político.
O espectro parlamentar fica pois dividido entre o centro-direita e a direita “pura”, quando não radical. E tal como no caso húngaro, sobeja o risco de o centro e a direita moderada se radicalizarem por terem de competir, apenas e só, com forças populistas e extremistas de direita.
O apagamento dos partidos de esquerda e de centro-esquerda é, por isso, motivo de séria e profunda preocupação. É, por isso, que, também por cá, estranho que tantos estranhem a genuína inquietação que tenho revelado com a deriva radical do PS. Estou seriamente preocupado com a apropriação do PS (Partido Socialista) pela extrema-esquerda. Não augura nada de bom. Nem para o país, nem para o sistema político. Todos vamos pagar, nos sentidos literal e metafórico de “pagar”, essa deriva. E ela pode acabar num varrimento do PS. É aí, e não no lado direito e central do espectro político, que mora o risco de “pasokização”.

Fonte: jornal "Público"
Texto: Paulo Rangel