Um novo museu em Varsóvia está resgatando mil anos de história dos judeus na Polônia. Seus idealizadores querem celebrar uma cultura rica e complexa, hoje eclipsada pela sombra do Holocausto.
Os judeus começaram a se estabelecer na Polônia no início da Idade Média. Do século 17 até o início do século 20, o país foi o centro da vida judaica no mundo.
Em Varsóvia, em 1917, os judeus constituíam 44% da população. O bairro judeu da cidade era um conjunto de ruas barulhentas e movimentadas, cheias de lojas cujas fachadas anunciavam todo tipo de produto, de gravatas a flores artificiais.
Uma década mais tarde, no entanto, a Polônia e a Europa como um todo enfrentariam uma grave crise, levando muitos judeus a tentar a sorte em outros países, inclusive no Brasil. Essa onda migratória viria a se manifestar, décadas mais tarde, na ciência, na literatura e na política, entre outras áreas da vida brasileira.
Aos que permaneceram na Polônia, o futuro traria horrores nunca imaginados. A comunidade vibrante, com suas sinagogas, teatros e uma estrutura política própria foi destruída durante o Holocausto.
Gueto de Varsóvia
Para os mais de um milhão de turistas - muitos deles, judeus - que viajam anualmente para ver os vestígios dos campos de concentração construídos pelos nazistas na Polônia, essa história riquíssima tende a ser ofuscada pelos horrores da Segunda Guerra Mundial.
"A última coisa de que a Polônia precisava era de um museu do Holocausto, porque o país inteiro é um museu do Holocausto", diz Barbara Kirshenblatt-Gimblett, curadora da exposição permanente do museu.
"Temos uma obrigação moral de não apenas lembrar dos judeus que morreram - devemos lembrar como eles viveram".
Agora, isso é possível com uma visita ao Museu da História dos Judeus Polacos, que acaba de ser inaugurado em Varsóvia.
O historiador israelense Avraham Milgram, que já visitou o novo museu, disse que ele é, paradoxalmente, o maior museu da Polônia.
"O edifício é uma verdadeira joia arquitetônica, da autoria de dois arquitetos finlandeses que ganharam um concurso internacional proposto pelo governo polaco. Sem dúvida, será a grande atração turística de Varsóvia nos próximos anos e será visitado por turistas de todas as nacionalidades, pois é impossível compreender a Polônia sem conhecer a comunidade judaica que existiu durante 1000 anos nos territórios polacos".
O museu foi construído no local onde ficava o maior gueto judaico, o Gueto de Varsóvia, estabelecido pelos nazistas alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao lado está um monumento construído em homenagem aos jovens - homens e mulheres - que, em abril de 1943, morreram resistindo a uma tentativa, pelos nazistas, de destruir a área.
Terra Prometida
As paredes do prédio são construídas de vidro. Nelas está inscrita, em hebraico, a palavra Polônia. Acima da entrada principal, uma fenda se abre até o teto, criando um vão profundo que se estende até o meio do prédio. Ele simboliza a passagem bíblica em que Moisés abre as águas do Mar Vermelho, formando um caminho para a travessia dos judeus que deixavam o Egito em direção à terra prometida.
Por meio de maquetes da cidade medieval, mapas, filmes, fotografias, áudio e telas que respondem ao toque, a exposição, inaugurada esta semana pelos presidentes da Polônia e Israel, narra toda a história, desde o primeiro assentamento judeu no país, no ano 960, até os dias de hoje.
Assunto espinhoso
Ela conta como os judeus foram expulsos ou fugiram de guerras na Europa Ocidental e vieram para a Polônia, trazendo com eles uma economia monetária e de crédito. Os governantes polacos deram a eles o direito de se estabelecerem no país, formarem suas comunidades, seguirem sua própria religião e se dedicarem a certas atividades.
Uma das jóias da exposição é uma réplica do teto de uma sinagoga de madeira que existiu em Gwozdziec, no século 17. Ele é adornado com pinturas de animais e signos do zodíaco.
O tema difícil das relações entre polacos e judeus durante a ocupação nazista é abordado com cuidado. A exposição fala dos polacos que apoiaram o projeto nazista de extermínio dos judeus mas também daqueles que arriscaram suas vidas tentando ajudá-los.
Um corredor revestido de metal enferrujado, exalando cheiro de queimado, representa os campos de concentração.
As galerias dedicadas ao período do pós-guerra mostram como muitos dos sobreviventes preferiram emigrar a tornarem-se alvos de suspeita, perseguições e campanhas anti-semitas dos comunistas.
No final da exposição, o visitante descobre um pouco sobre a pequena comunidade judaica que vive na Polônia atual.
"Acho que esse museu pode fazer uma enorme diferença na renovação da vida judaica na Polônia. A renovação é pequena, a comunidade é pequena, mas isso não a torna menos importante", diz Barbara Kirshenblatt-Gimblett.
"A comunidade judaica (na Polônia) é pequena não apenas por causa de genocídio, emigração, assimilação e comunismo, mas por causa do medo e vergonha que levaram pais a esconderem ou guardarem segredo sobre as origens judaicas de seus filhos e netos", diz a curadora.
Legado no Brasil
Em meados da década de 1920, fugindo da crise europeia, milhares de judeus polacos foram parar no Brasil. O historiador Avraham Milgram, que viveu no Brasil, explica que seu legado está presente com força na vida brasileira hoje.
"A maioria falava o idische, a língua dos judeus ashkenazitas do leste europeu. Em pouco tempo estabeleceram suas instituições comunitárias: sinagogas, escolas, cooperativas e associações de ajuda mútua, partidos políticos, jornais, teatros e cemitérios", disse Milgram.
"O ideal da maioria destes imigrantes era ver seus filhos estudarem nas universidades, o que de fato aconteceu da segunda geração em diante".
Assim, explica Milgram, surgiria uma geração de descendentes de imigrantes polacos que se destacaria na cultura, ciência e política brasileiras, entre outras áreas.
"No jornalismo, encontramos o decano dos jornalistas brasileiros, Alberto Dines, o escritor falecido, membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar, o historiador medievalista Nachman Falbel, o escritor idischista Meyer Kuciński e seu filho Bernardo Kuciński, o historiador e escritor Elias Lipiner, o advogado e escritor Samuel Malamud, o ex-ministro Celso Lafer, o escritor (e político) Alfredo Sirkis".
"Há muitíssimos médicos, engenheiros, economistas, psicólogos, arquitetos, artistas e músicos filhos de imigrantes da Polônia que cumpriram com os ideais de seus pais", diz Milgram.
Raízes judaicas
Para o povo polaco o museu tem um papel adicional: ajudar descendentes dessa cultura a reconstruírem sua identidade. Segundo estimativas, há hoje entre cinco e sete mil judeus registrados na Polônia e talvez 25 mil descendentes.
"O museu vai ser um lugar onde os polacos que descobrem suas raízes judaicas poderão sentir orgulho de ser judeus e dar seus primeiros passos na descoberta do que significa o Judaísmo", disse o rabino chefe da Polônia, Michael Schudrich.
O empresário Piotr Wislicki, que ajudou levantar fundos para financiar o projeto, descreveu a seguinte cena, envolvendo uma família americana que saía do museu há duas semanas:
"Vi os filhos e netos sorrindo e os avós chorando. Então perguntei: 'O que aconteceu? Foi a galeria do Holocausto (que os fez chorar)?' E eles responderam: 'Não, estamos felizes porque no final de nossas vidas pudemos mostrar a nossos filhos e netos nossa história esplêndida, como a vida realmente era na Polônia'".
Fonte: BBC Brasil