quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Estado e Igreja juntos na Polônia ou a ascensão e queda do arcebispo de Cracóvia?

Polacos comemoram a entrada na União Europeia nas ruas de Varsóvia agitando as bandeiras da União e da Polônia

Não é segredo para ninguém o estarrecimento do Papa João Paulo II com o baixo comparecimento dos polacos às urnas na votação do plebiscito de 2003 para a entrada da Polônia na União Europeia, que se realizou no fim de semana.

Preocupado, o Papa, na noite do sábado, já com a votação em andamento, telefonou para três personagens da Polônia, o Cardeal Primaz Józef Glemp, o padre Tadeusz Rydzyk e o editor do jornal Gazeta Wyborcza, Adam Michnik. Pediu que os três conclamassem os polacos a comparecerem às urnas no domingo e dissessem SIM para a entrada na União Europeia.

Rydzyk usou os microfones da sua Rádio Maria para solicitar aos fiéis que atendessem ao pedido do pontífice. Glemp determinou a todas as dioceses, paróquias e igrejas do país, que na homilia das missas daquele domingo de manhã, fosse divulgada a ordem de João Paulo II. Michnik imprimiu uma edição especial do jornal e passou a noite, distribuindo-o por todo o país.

A ordem do Papa era para comparecimento aos postos de votação do plebiscito, para votar Sim pela entrada na União Europeia. O pedido foi atendido e desta forma foi possível recuperar o comparecimento ínfimo, do sábado, e atingir 58,5 % dos eleitores, no domingo. O mínimo aceitável era 51%. O SIM venceu com 77% dos votos, ratificando assim a entrada da Polônia na União Europeia. Apenas 23% disseram Não.

Oficialmente a Polônia passou a fazer parte da União Europeia,  em 1º de maio de 2004. O sonho de integração do Papa João Paulo II finalmente se realizou.

Em 1999, o Papa em visita a Polônia, comparece ao Sejm - Congresso e fala na importância do país fazer parte da UE

O Santo João Paulo II foi um defensor ferrenho da entrada da Polônia da União Europeia. Em 18 de maio de 2003, ele fez um pronunciamento onde dizia:

"Não haverá unidade na Europa até que se torne uma comunidade de espírito. Este fundamento mais profundo de unidade foi trazido à Europa e fortalecido ao longo dos séculos pelo Cristianismo com o seu Evangelho, com a sua compreensão do homem e com a sua contribuição para o desenvolvimento da história dos povos e nações. Esta não é uma apropriação da história. Pois a história da Europa é como um grande rio no qual fluem numerosos afluentes e riachos, e a diversidade de tradições e culturas que a constituem é a sua grande riqueza. O núcleo da identidade europeia é construído no Cristianismo". 

E acrescentou o slogan que ficaria marcado para sempre:
"Da União de Lublin à União Europeia! Este é um ótimo acrônimo, mas contém uma grande quantidade de conteúdo. A Polônia precisa da Europa."

Como se sabe, historicamente, a mais antiga república do mundo pós-renascimento, surgiu na cidade polaca de Lublin, em 1569, pela União do Reino da Polônia com o Grão-Ducado da Lituânia, e durou nesta forma até a adoção da Constituição de 3 de maio de 1791.

Nestes últimos 16 anos, a Polônia viu os laços da Igreja de Karol Wojtyła se aproximarem cada vez mais de um partido político, o PiS – Partido do Direito e Justiça, comandado pelos gêmeos Kaczyński. Também não é segredo para ninguém, a participação decisiva do padre Tadeusz Rydzyk, por meio de sua Rádio Maria, suas duas TV’s a cabo e faculdade de jornalismo, para a eleição de Lech Kaczyński em 2005.

Jarosław e Lech Kaczyński

Lech acabou morrendo na queda do avião presidencial junto com 96 pessoas que estavam à bordo, na viagem à emblemática cidade de Katyń, na Rússia. Foi em Katyń que o Exército Vermelho assassinou 22 mil oficiais polacos durante a Segunda Guerra Mundial. O presidente morreu, mas o irmão Jarosław permaneceu vivo para fazer vitorioso o partido de extrema-direita nas duas recentes eleições.

O que parece ser segredo, é a interferência da Igreja Católica no partido extremista, xenófobo, antissemita, misógino e fascista de Jarosław Kaczyński. Partido este que reelegeu Andrzej Duda para a presidência da República, meses atrás.

 
Andrzej Duda, o presidente reeleito de extrema-direita

Mas não se enganem, o segredo está caindo por terra. Os próprios representantes da igreja, que detém 97% da população do país sob sua doutrina, estão se derretendo e enfrentando a fúria salutar das mulheres polacas. O protesto que se estende por mais de duas semanas nas ruas do país, diante dos palácios do Congresso, da Presidência da República, do Tribunal Constitucional é uma resposta inflamada da polacas contra a decisão do judiciário que proibiu o aborto por má-formação do feto. Esta decisão, polêmica, foi acertada entre o PiS – Partido do Direito e Justiça e a Igreja Católica Apostólica Romana da Polônia.


Polacas em greve bloqueiam ruas de Cracóvia

O furor das mulheres se voltou contra as cúrias e igrejas, quando o arcebispo metropolitano de Cracóvia, Marek Jędraszewski começou a criticar os protestos femininos. Ele também parabenizou os juízes pela coragem e integridade após o julgamento do Tribunal Constitucional sobre o aborto. Marek fez pronunciamento durante a missa de indulgência celebrada no santuário papal “Białych Morzach” (Mares Brancos), em Cracóvia. Na oportunidade, ele citou textualmente a frase decisiva da presidente do Tribunal, Julia Przyłębska: "o aborto em caso de deficiência fetal grave e irreversível ou doença incurável é inconsistente com a Constituição”.

Jędraszewski é o mesmo arcebispo que na última Semana da Páscoa quando já vigoravam os protocolos da OMS - Organização Mundial de Saúde, de distanciamento social, uso do álcool gel e outros, conclamou os padres da sua diocese a exortarem nas missas, o compromisso dos fiéis de comparecerem às tradicionais procissões da semana. Não satisfeito, ele mesmo saiu às ruas de Cracóvia em procissão. Foi um ato religioso do qual participaram centenas de católicos, sem máscara, aglomerados e sem observar a distância segura.

Jędraszewski não tem fechado a boca desde então. “Há ataques a igrejas e santos nacionais, quando a liberdade é absolutizada até a anarquia. Na verdade, dar a outra pessoa o poder sobre a Polônia, é desistir da independência levianamente e sem reflexão”, argumentou o arcebispo na Catedral do Castelo de Wawel. Em sua exortação, Marek criticou as mulheres.

Indignadas, elas portaram letras garrafais diante de seus corpos contra a decisão do judiciário polaco, em frente à janela da Cúria de Cracóvia, denominando-a de "Casa de Satanás". Na janela, sobre a porta principal, há uma grande foto do Papa colocada ali desde a sua morte.

"Dom Szatana" (Casa de Satanás) - Foto: Beata Zawrzel

Na quarta-feira, dia 11 de novembro, data em que se comemora a recuperação da independência da mais antiga república do mundo, a da Polônia, Jędraszewski voltou a criticar as mulheres.
Na Catedral de Wawel, ele disse: “Temos uma experiência tão doída e uma consciência dolorosa das dificuldades em que nos encontramos. Há uma pandemia, bem como tentativas de introduzir na Polônia uma cultura anticristã e neomarxista, que proclama em seus slogans, um desprezo pela santidade de cada vida concebida. Onde a dignidade de uma mãe que deseja dar à luz uma criança carregada sob seu coração, é degradada.”

Misogenia não é apenas a aversão a “gays” e mulheres, mas também é uma atitude alimentada pelos homens que se dizem machos. Além disso, é premissa dos homens do alto clero católico, como o arcebispo Marek que não chegou a cardeal. Dias atrás, ele chegou a dizer mais este absurdo: “o raio característico com o logotipo da Greve das Mulheres era um sinal usado pelos homens da SS”.

No início do mês, Jędraszewski  escreveu sua "Carta aos Padres da Arquidiocese de Cracóvia", pouco antes do Dia de Todos os Santos. Tendo em mente, os protestos que acontecem em toda a Polônia, como parte da Greve das Mulheres, declarou: “Nos dias de hoje estamos passando por um momento difícil relacionado a agressões inimagináveis. Não apenas verbais! Quando nossos templos são devastados somos acusados de defender a verdade sobre a dignidade e a santidade de toda vida humana contida no Evangelho de Cristo". Foi uma resposta a invasão das mulheres às igrejas católicas polacas.

Arcebispo metropolitano de Cracóvia, Marek Jędraszewski

Em março ainda, no início da pandemia, Jędraszewski celebrou missa em memória do Dia Nacional da Memória dos Soldados Amaldiçoados. Na ocasião, ele foi recebido por manifestantes LGBT’s portando o slogan: “A praga do arco-íris e a civilização da morte dão as boas vindas ao Arcebispo Jędraszewski.” Enquanto o arcebispo falava sua homília dentro da igreja atacando o movimento LGBT, do lado de fora se ouvia a canção antifascista italiana “Bella Ciao”.

Cinco meses depois, em agosto, o ultraconservador Jędraszewski voltou a atacar o movimento das cores do arco-íris, contrariando, inclusive o Papa Francisco. Disse ele: “Não pise o passado de nossos altares”.

Ainda em agosto, ele se tornou co-presidente da Comissão Conjunta do Governo e do Episcopado polaco.

Se aparentemente, Marek conta com a aprovação dos fiéis mais fervorosos em sua pregação contra o movimento “Greve das Mulheres”, há parlamentar na oposição ao governo de extrema-direita que ironiza o arcebispo de Cracóvia.

O deputado Krzysztof Śmiszek disse ao portal Onet, que "as palavras do Arcebispo Jędraszewski são muito engraçadas, porque são ditas por um homem que representa uma instituição que consiste apenas em solteiros. Acho que ele dirigiu esta declaração a si mesmo e ao seu meio"


Śmiszek disse que Marek Jędraszewski ao se dirigir aos peregrinos, reunidos no santuário da cidade de Kalwaria Zebrzydowska, "ao criticar a ‘ideologia dos solteiros’, faz com que mais e mais polacos deixem a Igreja”.

O deputado foi ainda mais incisivo, “muitas pessoas estão se afastando do catolicismo, não porque não sejam caras a certos valores universais que a Igreja Católica proclama. Os polacos estão deixando a Igreja por estarem revoltados e indignados. Eles não concordam com a aliança entre o trono e o altar, e que bilhões de złotys (moeda polaca) sejam bombeados do Estado para a Igreja.”

Claro está, pela análise do comportamento de Jędraszewski e da igreja católica da Polônia que o deputado Krzysztof Śmiszek é de esquerda. E mais ainda, quando o parlamentar se refere à situação da comunidade LGBT polaca atacada pela igreja do arcebispo: “Tenho vergonha do debate que aconteceu no Parlamento Europeu sobre a Polônia. Mais uma vez, tornamo-nos o arquétipo de uma criança malvada e rebelde em uma família europeia. Isso deveria fazer os governantes da Polônia, pensarem que nosso país e a Hungria ainda estão sob censura não sem razão.”

Krzysztof Jan Śmiszek nasceu em 25 de Agosto de 1979 em Stalowa Wola. Ele é advogado, ativista de direitos humanos e das minorias, tem doutorado em Direito e professor universitário. É criador e co-fundador da Sociedade Polaca de Lei Antidiscriminação, uma associação nacional de advogados e advogadas que trabalham pela igualdade e não discriminação. Também é presidente honorário desta organização. Membro do Partido SLD - Sojusz Lewicy Demokratycznej (União Democrática de Esquerda), que desde janeiro de 2020 passou a se chamar NL - Nowa Lewica (união entre o SLD e Wiosna). Śmiszek foi eleito deputado nacional para o Sejm (Câmara dos Deputados) ano passado.

A vice-chefe da Comissão Europeia, a tcheca Věra Jourová, anunciou que irá decidir sobre os próximos passos no processo de sanções a serem adotadas contra a Polônia em relação às polêmicas leis judiciárias muito em breve. “Devemos deixar claro, que os fundos da UE não irão para a Polônia se os direitos fundamentais dos grupos LGBT forem violados”, afirmou Jourová.

A eurodeputada tcheca Věra Jourová

A Polônia registra oficialmente menos de 2.000 abortos legais por ano. As organizações feministas calculam que quase 200.000 acontecem de forma ilegal, ou no exterior, a cada 12 meses. Sim, no Exterior.

Desde que o partido no poder e a igreja católica começaram a endurecer o discurso sobre o aborto no país que as mulheres polacas são tratadas como criminosas. O gran-finale desta cruzada culminou com o anúncio do Tribunal Constitucional proibindo o aborto de fetos com má-formacão e doentes.

ONG's europeias desde a decisão têm recebido um aumento de solicitações considerável de polacas que desejam realizar abortos. De acordo com a Ciocia Basia (Tia Barbarazinha),  ONG com sede em Berlim, que apoia as polacas que decidem abortar na Alemanha  a situação que já era complicada pela pandemia só piorou  depois da decisão do Tribunal. "Recebemos três vezes mais ligações que antes", declarou Ula Bertin, voluntária da Ciocia Basia.

A Aborto Sem Fronteiras (AWB), uma coalizão multinacional de Organizações Não Governamentais, declara que, desde o veredicto, já ajudou 40 polacas a viajarem ao exterior para abortar, ou a preparar as viagens. O número representa o dobro da média mensal.

O grupo holandês Abortion Network Amsterdam, informou que recebeu ligações de mulheres que estavam à espera de abortos legais em hospitais polacos e que foram "de algum modo abandonadas"


Esta união entre o partido no poder, o judiciário e a igreja do arcebispo de Cracóvia, que se posiciona contra as mulheres polacas está cavando um abismo, não só no próprio país, mas entre este e a União Europeia. Dar as mãos aos fascistas da Hungria não vai levar a Polônia aos céus, mas com certeza, o purgatório está muito próximo para os ultraconservadores católicos polacos.

Texto: Ulisses Iarochinski