domingo, 8 de agosto de 2010

Representações na Música de Chopin

Conheci Fabrício em Cracóvia. Era 2002. Ele estava já há um ano na Polônia. Tinha feito o curso de idioma e cultura polaca, na Universidade de Wrocław. Curso este que todos os estudantes brasileiros ganhadores de bolsa de estudos do Ministério de Educação da Polônia fazem obrigatoriamente antes de iniciar os estudos de graduação, mestrado ou doutorado.
Fabrício estava morando no Akademiko Dom Piast (Casa de estudantes) em Cracóvia, para começar o curso de graduação em Arqueologia, na Faculdade de História da Universidade Iaguielônica. Infelizmente para a Academia Polaca, Fabrício escutou o coração e voltou para Erechim, onde finalmente se casou com a bela Christine. Ela, como ele, descendente de polacos, tinha conhecido Fabrício, no curso de idoma, em Wrocław (pronuncia-se Vrótssuaf).
Mas apesar da volta ao Brasil, do casamento, Fabrício, não desistiu da história, nem da Arqueologia. Formou-se na URI, campus universitário de Erechim. E dele é o artigo abaixo. Interessante sob todos os aspectos. Vale a pena conferir:



ARTE, SENTIDO E HISTÓRIA
Suas Representações na Música de Chopin

Fabricio J. Nazzari Vicroski*



Resumo: O presente artigo tem por objetivo adentrar de forma concisa no mundo da linguagem musical, com o intuito de evidenciar o potencial cognitivo da obra do compositor e pianista polaco Fryderyk Chopin, vislumbrando suas possibilidades interpretativas como forma de expressão que apresenta sentimentos individuais convertidos em expressão coletiva. Para tanto destaca o potencial da arte como linguagem, com ênfase para a música. A análise é articulada a partir de três dimensões: arte, sentido e história, ressaltando a música de Chopin não exclusivamente como expressão artística, mas também como uma forma de linguagem/comunicação, através da qual o compositor manifestou seus sentimentos em relação aos acontecimentos que o cercavam, denotando assim a relação existente entre o desenvolvimento do pensamento humano, da arte (neste caso a música) e os eventos históricos.
Palavras-chave: Chopin. Música. linguagem.

Introdução

Ao acompanharmos o desenvolvimento das sociedades humanas ao longo da história, logo percebemos a importância das manifestações artísticas no processo de compreensão do contexto social a que correspondem, contemplando suas dimensões cultural, política e econômica.
Se considerarmos o fato de que as manifestações artísticas são inerentes a existência humana, a aplicabilidade desta análise é valida para toda e qualquer sociedade, não apenas as contemporâneas, mas também aquelas situadas em tempos remotos ainda na pré-história, com a condição de que existam vestígios (materiais ou imateriais) que remetam à sua artisticidade. Neste sentido, a arqueologia e a semiótica tem contribuído de forma considerável para o estudo do homem arcaico , através da análise das pinturas e grafismos rupestres.
Todavia, o período de estudo aqui enfocado situa-se na primeira metade do século XIX, tendo a música como matriz de análise, inserida, portanto, no período romântico, que corresponde a um contexto histórico de valorização, fortalecimento e até mesmo criação de anseios nacionalistas, sobretudo, na Europa, onde diversos povos buscavam sua consolidação como nação. Tal aspiração é propagada através das artes, como na pintura, arquitetura, escultura e literatura, naturalmente, no campo musical não poderia ser diferente, compositores da época expressaram sentimentos políticos e patrióticos através de suas obras, fornecendo, portanto, inexaurível material de pesquisas.”Uma das características que tornam a música um fecundo objeto de investigação é seu caráter universal e sua presença em todas as sociedades” (TROMBETTA, 2007, p. 215-216)
O objetivo deste artigo é vislumbrar as possibilidades interpretativas das composições de Fryderyk Franciszek Chopin, articulando a análise a partir de três dimensões: arte, sentido e história, com o intuito de evidenciar a potencialidade da música de Chopin não exclusivamente como expressão artística, mas também como uma forma de linguagem/comunicação, através da qual o compositor manifestou seus sentimentos em relação aos acontecimentos que o cercavam, compondo assim um “documento” que apresenta uma visão particular do contexto histórico no qual estava inserido, permitindo uma peculiar leitura do passado, e até mesmo a confrontação desta versão com as demais fontes documentais, denotando assim a relação existente entre o desenvolvimento do pensamento humano, da arte (neste caso a música) e os eventos históricos.

1 Fryderyk Franciszek Chopin, o poeta do piano

O ano de 2010 constitui-se numa data comemorativa para a música erudita, uma série de eventos culturais está programada para homenagear o bicentenário do nascimento do compositor e pianista polaco Fryderyk Franciszek Chopin, (ou Szopen em polaco). A Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura (UNESCO), decretou o Ano de Chopin, as celebrações (recitais, concertos, filmes, exposições) ocorrerão em países como Polônia, França, Suíça, Áustria, Taiwan, Israel, Finlândia, EUA, Argentina, Brasil, entre outros, totalizando nada menos do que dois mil eventos comemorativos em todo o mundo. A fim de contextualizar adequadamente a presente pesquisa, será apresentado brevemente seus principais dados biográficos.
Além de um notável compositor, Chopin também foi um admirável pianista, não apenas um expoente do período romântico, mas sem dúvida um gênio da música clássica, também conhecido com o poeta do piano, pois muitas de suas composições são consideradas verdadeiras poesias de tonalidades sonoras. Nascido na Polônia em 1º de março de 1810, na pequena cidade de Żelazowa Wola, nos arredores da capital Varsóvia (Warszawa), teve relativamente pouco tempo para expressar sua musicalidade, vindo a falecer, com apenas 39 anos de idade, em 17 de outubro 1849.
Seu pai, Nicolau Chopin, emigrou para a Polônia em 1787, com apenas dezesseis anos de idade, trabalhou como professor para a aristocracia polaca, entre os quais a família Skarbek, onde conheceu Justyna Krzyżanowska, sua futura esposa, responsável pela administração da residência. Casaram-se após quatro anos de convívio, Fryderyk era o segundo dos quatro filhos, dos quais três eram mulheres.
Teve contato com a música desde cedo, no próprio convívio familiar, sua mãe dava aulas de piano e seu pai tocava flauta e violino, aos seis anos de idade recebeu as primeiras aulas de piano de sua irmã mais velha, aos sete anos já compunha suas primeiras obras, e aos oito anos os familiares e amigos contemplaram com admiração seu primeiro concerto.
O músico de origem tcheca Wojciech Adalbert Żywny encarregou-se de sua educação musical durante a infância, com quem aprendeu a música de Bach e Mozart, seus compositores preferidos (RINCÓN, 2006). Já na adolescência, seus estudos foram desenvolvidos na Universidade de Varsóvia (Uniwersytet Warszawski) onde teve como mestre o compositor polaco Józef Elsner, iniciando seus estudos em teoria musical, contraponto, composição e harmonia.
Seu fascínio pela música popular tornou-se muito mais latente neste período, cabe lembrar que Chopin nasceu no meio rural, tocava com músicos camponeses e aprendia as particularidades musicais de cada região, compondo variações e recriando-as em suas obras, possuía assim uma estreita ligação com o folclore polaco, uma fonte de inspiração muito presente em suas composições.
Apenas três semanas após concluir seus estudos no conservatório, aos dezenove anos de idade, seu pai lhe concedeu dinheiro para realizar uma viagem à Viena, onde foi aclamado pelo público local em dois concertos. Em seguida retornou à Polônia, mas não permaneceu ali por muito tempo, pois seus pais achavam necessário que Chopin viajasse para uma grande metrópole européia afim de desenvolver seu gênio musical (EKIERT, 2005). Assim, partiu mais uma vez para Viena, onde permaneceu por cerca de seis meses. Apenas seis dias após sua chegada eclodiu uma grande revolta na Polônia (Insurreição de 1830), então subjugada pela Rússia, Prússia e Áustria, a revolta logo foi sufocada pelos exércitos do czar da Rússia. Chopin viu-se impedido de retornar à sua pátria, partiu então para a França, sempre nutrindo o desejo de ver seu país livre novamente, sem, contudo, imaginar que jamais pisaria em solo polaco outra vez.
Ao partir, Chopin também deixou para trás seu primeiro amor, Constância Gładkowska, uma talentosa cantora por quem nutria silenciosa adoração, o sentimento era recíproco, porém, com poucas chances de tornar-se um relacionamento amoroso efetivo, tendo em vista os planos da família de Constância com relação aos seus pretendentes.
Sua chegada a Paris representa um marco divisor em sua vida, pois percebendo o potencial artístico da capital francesa, estabeleceu-se ali e logo foi aclamado nos salões parisienses, viveu em meio a aristocracia, tornau-se amigo de Liszt, Mendelssohn, Kalkbrenner, Berlioz, Pierre Leroux, Bellini, Delacroix, entre outros, amigos estes que muitas vezes o estimularam e até mesmo tentaram organizar recitais e concertos, ante sua resistência ao contato com as multidões, considerava o público das salas de concertos muito diversificado, sentia-se a vontade apenas numa sala ou apartamento rodeado de pessoas conhecidas, onde deliciava-se em improvisos (ANDRADRE, apud SIEWIERSKI, 1999).
Apaixonou-se pela conterrânea Maria Wodzinska, com quem tinha planos de casar, após um sopro de bons momentos tem início um período conturbado de sua vida, mais uma vez o relacionamento não conta com a aprovação da família da moça. Minha desgraça (Moja bieda) é o que Chopin escreve sob o maço de cartas enviadas por Maria, enquanto a tuberculose vem para torna-se sua companheira inseparável.
Naturalmente a vida de um típico romântico não poderia ser permeada unicamente de bons momentos, nem tampouco extinguir-se após um único suspiro, e é assim, num período de debilidade física e emocional que surge em sua vida a escritora francesa George Sand , sua terceira e última paixão.
Permaneceram juntos por praticamente dez anos, neste período compôs e poliu grande parte de suas obras na casa de campo de George. Em 1838 decidem passar um tempo em Maiorca, em busca de condições compatíveis com a doença do compositor, contudo, lá encontraram um clima chuvoso, debilitando ainda mais sua saúde, além do mais a Espanha se encontrava em guerra. O rompimento ocorreu em 1847, com a saúde extremamente debilitada e sem dinheiro, passou algum tempo na Inglaterra e Escócia, enquanto estourava a Revolução de 1848 na França. Após seu retorno a Paris, encontrou-se com George Sand, mas seu orgulho impediu que reatassem.
Por fim, em 1849, com apenas 39 anos de idade, sua saúde já havia se esvaído, não compunha mais, o saudade da Polônia o consumia, rodeado em seu leito pela irmã mais velha, amigos e alunos que o acompanharam em sua vida em Paris, abandona em definitivo o sofrimento, vindo a falecer em dezessete de outubro.
Seu corpo foi enterrado no cemitério Père Lachaise, seu coração, no entanto, atravessou fronteiras sob o vestido da irmã num recipiente com álcool, chegando até Varsóvia, onde foi amuralhado na parede da nave da igreja da Santa Cruz (EKIERT, 2005). Teve uma vida curta, no entanto, intensa, pois sofreu, amou, sorriu, chorou, fez grandes amizades, e ao fim de seus 39 anos de vida intensa legou ao mundo obras musicais de inestimável valor artístico.

2 A potencialidade da música como linguagem

A fala constitui hoje a principal forma de comunicação entre os indivíduos, ao menos se analisarmos pelo ponto de vista da praticidade, contudo, cabe lembrar que ela não é única, e apesar de, juntamente com a escrita, constituírem as formas mais usuais de linguagem, nem sempre são as mais eficientes.
É possível que antes mesmo do desenvolvimento da fala e da escrita as pinturas e grafismos rupestres exercessem funções de linguagem, uma forma de expressão e comunicação utilizada não apenas entre seus semelhantes, mas também como uma forma de acesso ao incompreensível, ao mundo sagrado. O potencial da arte como linguagem é explorado, portanto, desde a pré-história.
Segundo a visão construtivista de Nelson Goodman (apud TROMBETTA, 2007), não temos acesso ao mundo como ele é, o que temos são apenas visões de mundo por nós construídas para descrevê-lo, e o homem é o ser mais simbólico dentre todos os animais, constantemente ele constrói sistemas simbólicos, podemos, assim, nos referir a determinados elementos utilizando apenas uma simbologia.
A arte e, neste caso em específico a música, através de um sistema simbólico próprio, pode servir para explicar as coisas do mundo. Para Hegel a arte é uma estratégia para a autocompreensão, e através da fenomenologia, ou seja, o estudo da aparência das coisas, poderíamos ter acesso ao seu real significado.
Os eventos históricos, o desenvolvimento da arte e do pensamento humano estão, portanto, diretamente relacionados. Temos assim a ciência e a arte com seus sistemas simbólicos particulares em constante mutação contribuindo para a elaboração de nossas versões de mundo. Para G. Rochberg:
A música é um fenômeno fisicamente mensurável, que se move no tempo. É universal na humanidade: a tendência para criar música está presente em nosso sistema nervoso, juntamente com nossa propensão à fala, de modo que ela constitui um material adequado para a avaliação de todas as sociedades e eras (apud CROSBY, 1999, p. 137-138).

O sistema simbólico da arte é baseado na exemplificação, diferentemente da ciência que trabalha com um sistema de denotação. “A exemplificação é um tipo de relação simbólica em que o objeto refere algumas das propriedades que possui e permite compreender [...] a função referencial presente em todas as obras de arte” (GOODMAN, apud TROMBETTA, 2007).
Seguindo esta linha de raciocínio podemos afirmar que toda a arte possui uma função simbólica, um valor cognitivo, contudo, não há métodos seguros para determinar o que uma obra de arte realmente representa (TROMBETTA, 2007).
Para Goodman as obras de arte desempenham um ou mais papéis dentre um esquema de funções referenciais: representação, descrição, exemplificação, expressão (apud TROMBETTA, 2007). Ao que tudo indica, a expressão parece ser a função recorrente nas composições de Chopin, que muitas vezes compôs com a ânsia de exteriorizar seus sentimentos com relação aos acontecimentos que o cercavam, tanto com relação a sua pátria, quanto a sua vida pessoal.
Ernst F. Schurmann (1988) classifica a linguagem em duas categorias, as sonoras e as não sonoras, desta forma as linguagens verbal e musical estariam inseridas na mesma ramificação. Trata-se, naturalmente, de uma classificação controversa, já que muitos consideram a propriedade discursiva um requisito essencial à linguagem, atribuindo tal qualidade apenas à linguagem verbal, enquanto outros defendem a ampliação deste conceito a tudo o que possa servir como forma de expressão de idéias e sentimentos, neste caso a música seria uma das formas mais eficientes de linguagens. Para Maria de Lourdes Sekeff a linguagem musical “é também um recurso de expressão (de sentimentos, idéias, valores, cultura, ideologia), de comunicação (do indivíduo com ele mesmo e com o meio que o circunda), de gratificação [...], de mobilização [...], e de auto-realização“ (2002, p. 14).
Ainda não dispomos de um aporte conceitual teórico que permita o estabelecimento objetivo dos critérios envolvidos ao considerar-se determinadas manifestações musicais comparáveis à comunicação lingüística (SCHUMARNN, 1988), nem por isso devemos desconsiderar seu potencial simbólico, pois seu valor cognitivo é incontestável.

3 Arte, Sentido e Histórica na música de Chopin

Tendo em vista o exposto e, com o intuito de extrair ou pelo menos demonstrar o potencial simbólico da música como linguagem, a pesquisa que aqui se desenvolve pretende articular uma breve análise da música de Chopin a partir de três dimensões: Arte, Sentido e História, exemplificando assim a relação existente entre o desenvolvimento da arte, do pensamento humano e os eventos históricos.
Do ponto de vista artístico, Chopin nos oferece duas possibilidades de análise, pois além de sua genialidade como compositor era também um virtuoso pianista, segundo Rincón (2006) ele pertence a uma espécie em extinção, quando não já extinta, a dos intérpretes-compositores. Ao final do século XIX os compositores foram abandonando gradativamente a interpretação, chegando ao ponto de dedicarem-se exclusivamente a composição, antes disto, era preciso que os próprios compositores executassem suas obras caso desejassem divulgar suas composições.
Como artista, segundo o escritor e poeta Mário de Andrade, Chopin realizou a linguagem do inexprimível, e sendo a virtuosidade e a improvisação duas das maiores manifestações da música romântica, também são elementos característicos da obra de Chopin. (SIEWIERSKI, 1999).
Amigo íntimo do compositor, o pintor francês Delacroix passou uma longa temporada em sua companhia na casa de campo de George Sand, pintou inclusive seu retrato (Ver figura 1). Referindo-se a Chopin disse: “é o artista mais verdadeiro que conheci” (RINCÓN, 2006, p. 19).

Chopin foi sem dúvida um grande artista, suas composições constituem hoje o testemunho de seu talento. Foi também um músico precoce, iniciando seus estudos aos seis anos, com sete já compunha e aos oito anos fez sua primeira apresentação ao público em Varsóvia. “Toda a sua biografia artística é o melhor padrão do artista íntegro [...] talvez Chopin seja o maior, o mais exatamente artista de quantos gênios nos propõe a arte da música” (ANDRADE, apud SIEWIERSKI, 1999, p. 15). Tais características certamente o colocam num patamar artístico senão louvável ao menos admirável.
Suas composições não eram desprovidas de sentido, não surgiam naturalmente, frutos do mero acaso, eram sim o reflexo do pensamento humano, a expressão do que via e, principalmente do que sentia. “Só não gostava quando tentavam encontrar em suas obras-primas reflexo de uma concreta realidade ou conteúdo literário” (EKIERT, 2005), pois diferentemente de Schumann ou Liszt, que imitavam os fenômenos da natureza em suas músicas, ou realizavam uma versão musical de determinados escritos literários ou flisóficos, Chopin se entregava à atmosfera de sua época, aos acontecimentos históricos e do cotidiano, aos fenômenos que o cercavam como recordações e sentimentos até mesmo banais.
Assim, nos ofereceu, por exemplo, uma imagem da alta sociedade parisiense e polaca em suas obras de salão, exteriorizou lembranças e sentimentos como a paixão por Constância Gładkowska no “Larghetto” do Concerto para piano nº. 2 em fá menor, op. 21 (RINCÓN, 2006), nos legou mazurcas e polonaises carregadas de anseios nacionalistas, mescladas com elementos da música popular polaca, resultado da saudade de sua pátria deixada para trás. O próprio compositor chegou a afirmar “que a arte é uma conversão do sentimento individual à sua expressão coletiva” (ANDRADE, apud SIEWIERSKI, 1999, p. 27).
Na primeira metade do século XIX o papel da tonalidade era um tema recorrente nas artes, tanto na pintura como na música.

Berlioz estava já trabalhando sobre o "Traité d'instrumentation", que mais tarde foi publicado em 1844 e passou a ser o evangelho dos compositores. Nos Prelúdios, Estudos e Noturnos, Chopin transformou a escritura (écriture) para piano, esse sistema e concentração de substância tonal. Criou as bases da moderna tonalidade pianística. Descobriu a tonalidade do piano nas formas originais de acompanhamento, nas rápidas passagens do pianíssimo, que em Chopin sempre permaneceram melodia, mas já anunciavam rastos de tonalidades sonoras. A constante instabilidade e variabilidade da tonalidade nas sonatas já constituíam novas relações entre melodia, harmonia e estrutura. A instabilidade da tonalidade e as eternas modulações eram sua originalidade e, dentro de algumas dezenas de anos, em Wagner se tornariam uma regra. Chopin foi uma das mais fortes individualidades artísticas na história da cultura mundial, não só na música. Fechou-se na música para piano, não escreveu óperas, não escreveu sinfonias. Fez da música para piano, pela primeira vez, uma potência artística independente (EKIERT, 2005).

Esta originalidade artística não era apenas um devaneio de um jovem compositor, mas algo que possuía um “sentido”, resultado de sua observação dos fenômenos que o cercavam, as novas construções tonais de Chopin talvez possam servir de exemplo para o processo de “morte da música” anunciada por Hegel, assim como o final da sua Sonata bemol, que tão “estranhamente” se desenrolava em menos de dois minutos, de forma quase lacônica, onde mal podia-se distinguir os elementos da composição. “Passaram-se quase cem anos para se conscientizar que se trata de um rasto tonal do som, projeção de tonalidade isolada e pura do som, que esse final anuncia uma época em que a tonalidade do som configurará a forma” (EKIERT, 2005).
O elemento importante a ser destacado é que Chopin, em suas composições, nos apresentou versões de mundo de certa forma alinhadas com o desenvolvimento do pensamento humano, ao compor introjetava um alto teor cognitivo em suas obras, seu notável talento para o improviso representa também uma elevada capacidade de adaptação e resposta imediata aos fenômenos que o circundavam.
Por serem resultado de determinadas experiências, suas composições são representações particulares de acontecimentos e sentimentos, elaboradas a partir da linguagem musical. No entanto, possuem uma vinculação histórica e, assim como um documento nos proporciona através de sua leitura, um relato sobre um fato histórico e, consequentemente uma sensação que remete ao evento descrito, na música de Chopin podemos ter acesso direto à sensação que o próprio compositor teve ao vivenciar determinado acontecimento, ou, na pior das hipóteses, contamos com o registro do sentimento do compositor expressado através da música.
Assim como Richard Wagner optou por saudar sua mulher através de uma composição em virtude do nascimento de seu filho, um sentimento que talvez não pudesse ser expressado através de palavras, também Chopin proclama sua visão dos acontecimentos que o cercam através da música, e muitos são os eventos históricos representados em suas obras.
A Europa do século XIX foi permeada por momentos de definição e transição, seja na política, nas artes, nas unificações e divisões territoriais, e a Polônia por sua localização geográfica estratégica muitas vezes esteve no centro de importantes disputas. No século XVIII teve seu território partilhado três vezes (1772, 1793 e 1795) entre a Prússia, Rússia e Áustria, recuperando sua independência somente após a 1ª Guerra Mundial.
Chopin nasceu no Ducado de Varsóvia, um Estado constituído por Napoleão I em 1807 sob a proteção da França. Teve curta duração, em 1813 caiu novamente na mão dos invasores. Do nascimento até o ano do falecimento do compositor houve oito insurreições (1819, 1830, 1831, 1832, 1839, 1846, 1848 e 1849), sendo a de 1830 a mais significativa (IAROCHINSKI, 2000).
Naturalmente, tais acontecimentos não passaram despercebidos, Chopin compõe o Estudo Revolucionário dó menor nº. 12 do opus 10 expressando ao mundo seu desespero e revolta por ver seu povo e sua pátria tendo sua liberdade tão escancaradamente suprimida, realizou até mesmo um concerto em benefício aos compatriotas emigrados após a revolta de 1830. Suas composições deste período são repletas de dramatismo e lirismo, e ainda hoje são consideradas pelo povo polaco um forte e intenso elemento nacionalista, sendo reconhecido como um símbolo de resistência até mesmo pelos invasores que tantas vezes ocuparam a Polônia, que em duas oportunidades destruíram sua estátua de bronze em Varsóvia e jogaram seu piano através de uma janela. Seu senso de nacionalismo Influenciou inclusive outros compositores.

As lições de história deixaram em Chopin visões da antiga potência da Polônia quando era no leste o "antemuro do cristianismo", quando então os poloneses derrotavam turcos e tártaros, exércitos russos, suecos, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Quando o rei Jan III Sobieski salvou Viena ante a invasão turca e a carga dos hussardos decidiu a sorte do cristianismo. Lembrança fresca era a morte do príncipe Josef Poniatowski na Batalha das Nações nos arredores de Lipsk, quando os poloneses cobriam a retirada de Napoleão. Reflexão sobre a sorte da Polônia e patriotismo soam mais tarde nas Polonaises heróicas de Chopin, assim como se faz sentir em alguns Estudos, como a saudade da Polônia volta em algumas Mazurcas, escritas na Maiorca e em Nohant (EKIERT, 2005).

Chopin nos oferece a sua versão de acontecimentos históricos e pessoais, “sabe brincar, sabe caricaturar os prepotentes, sabe exprimir a saudade, o żal , o instinto de apego ao lugar em que nasce” (ANDRADE, apud SIEWIERSKI, 1999, p. 11). “Todos os anos, durante as férias de verão no campo absorvia a singularidade do folclore musical polonês, seus arcaísmos severos e ásperos, sinos, antigas escalas de igreja, vazios quintos, característica quarta lídica, originalidade do metrum e ritmo” (EKIERT, 2005).

O som lá bemol no Prelúdio lá bemol maior, repetido onze vezes, soa como eco de onze batidas do relógio da torre, lembrando momento de separação; o Trio da Polonaise lá bemol maior - como tropel dos hussardos poloneses; no Estudo fá menor do opus 25 criou, dizem, um retrato de Maria Wodzinska (EKIERT, 2005).

Alguém poderá indagar: mas não seriam as composições de Chopin apenas versões particulares e subjetivas de fatos históricos e acontecimentos pessoais? Tudo leva a crer que sim, assim como também o são qualquer livro ou documento histórico, por mais imparciais que sejam as intenções de seus autores.
O fato é que este artista se expressa através da linguagem musical, reconhecida por seu valor cognitivo, e as sensações dos fenômenos que o cercam não apenas são registradas, como também constituem seu estímulo criador, sua fonte inspiradora, valorizando ainda mais suas composições, permeadas de arte, sentido e história.

Considerações finais

O próprio Chopin ao afirmar que percebia a arte como sendo a expressão coletiva de um sentimento individual, já nos anunciava a potencialidade simbólica presente em suas obras. Creio que ninguém duvide de sua competência artística, porém, suas composições servem também a outros níveis de interpretação, pois além do elemento artístico congregam aspectos do pensamento humano e determinados eventos históricos de sua época, retratando sentimentos e sociedades.
O compositor expressa não apenas uma cena ou uma fábula, mas seu estado de espírito, espontaneamente perspicaz, em sintonia com o mundo ao seu redor. “A verdadeira biografia de Chopin não está na sua vida, está na sua arte” (ANDRADE, apud SIEWIERSKI, 1999, p. 32).
O piano lhe serviu tão bem quanto o papel e a caneta para Henryk Sienkiewicz , a linguagem musical foi a forma de expressão através da qual chorou, denunciou, reclamou, divertiu e divertiu-se, festejou e despediu-se.
Mário de Andrade chamou a atenção para a atualidade simbólica de Chopin, na medida em que suas obras constituem uma manifestação de revolta perante as desventuras humanas que causam a opressão e a tirania, e continuará sendo atual “pelo menos enquanto estalarem, na torturada sociedade humana, os gritos dos escravizados e o chicote do opressor” (apud SIEWIERSKI, 1999, p. 35).
Servindo-se do potencial cognitivo da obra de Chopin, a pesquisa ora apresentada tentou depurá-la com a intenção de evidenciar seus elementos intrínsecos para além da artisticidade, buscando também seu sentido e historicidade. Naturalmente trata-se de um estudo conciso, mas que espera-se, coloque em evidência a potencialidade da obra de Chopin e também da música como linguagem.


ART, SENSE AND HISTORY
Your representations in music of Chopin
Abstract: This article aims to enter the world of musical language in order to highlight the cognitive potential of the work of Polish composer and pianist Fryderyk Chopin, demonstrating their interpretive possibilities as a means of expression of individual feelings converted to the collective expression. For this highlights the potential of art as language, with emphasis on music. The analysis is articulated through three dimensions: art, sense and history, highlighting the music of Chopin not only as artistic expression but also as a form of language / communication, through which the composer expressed his feelings about the events that around him, thereby emphasizing the relationship between the development of human thought, art (the music) and historical events.
Key words: Chopin; music; language.

Notas

Como homem arcaico, entende-se: aquele em que o sagrado e o mito possuem papel central na cultura. Também chamado de homem “pré-moderno” ou “tradicional”, compõe “tanto o mundo a que geralmente chamamos ‘primitivo’ como as antigas culturas da Ásia, da Europa e da América (ELIADE apud OLIVEIRA, 2009, p. 11).
Pronuncia-se Chôpen, com vogais abertas, sílaba tônica na paroxítona, e a letra “n” pronunciada.
George Sand é o pseudônimo adotado por Amandine Aurore Lucille Dupin, a baronesa Dudevant, escritora e precursora dos movimentos feministas, participou da Revolução de 1848.
Significado em língua polaca: pesar, dó, pena.
Escritor e jornalista polaco, autor de clássicos literários como a trilogia Com fogo e ferro (1884) e Quo Vadis (1896). Foi agraciado com o prêmio Nobel em 1905.

Referências

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EKIERT, Janusz. Coração de Gênio. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2010.
Frédéric Chopin. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2010.

Grande Enciclopédia Larousse Cultural. Nova Cultural, 1999.
Kto to jest Fryderyk Szopen. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2010.

WROBLEWSKA-STRAUS, Hanna. Śladami Fryderyka Chopina w Polsce. Warszawa: Warszawskie Centrum Informacji Turystycznej, 1998.
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LOPEZ, Luiz Roberto. Sinfonias e catedrais: representação da história da arte. Porto Alegre: Universidade UFRGS, 1995.
OLIVEIRA, Tiago Fernando Soares de. O Mito do Eterno Retorno e a Angústia do Tempo Histórico na Perspectiva de Mircea Eliade. Monografia de conclusão de curso de graduação em História. Erechim: URI, 2009.
RINCÓN, Eduardo. Frédéric Chopin: Royal Philharmonic Orchestra. Texto e documentação musical. Coleção Momento Clássico, v. 2. Porto Alegre: RBS Publicações, 2006.
SCHURMANN, Ernst F. A Música como Linguagem: Uma Abordagem Histórica. São Paulo: Brasiliense, 1988.
SEKEFF, Maria de Lourdes. Da música: seus usos e recursos. São Paulo: UNSESP, 2002.
SIEWIERSKI, Henryk (Org.). O Piano de Chopin: obra de aproximação. Erechim: Edelbra, 1999.
TROMBETTA, Gerson Luis. Simbolizar e compreender: sobre o valor cognitivo da arte. In: ORMEZZANO, Graciela (Org.). A Pesquisa em Diálogo: comunicação + arte + educação. Vol. 2. Passo Fundo: UPF Editora, 2007.
____________. O círculo e a flecha: Representações do tempo no desenvolvimento da música. História: Debates e Tendências, v. 8, n. 1, jan./jul. p. 215-225. Passo Fundo: 2008.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.