O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão
Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.
O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.
Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.
Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.
Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.
Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.
É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara linguística.
Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.
O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem, então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questões exigem.
Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de Português e reitor da UFPR.
Na dissertação do meu mestrado em Cultura Internacional, na Universidade Iaguielônia, de Cracóvia trato do assunto em um de meus capítulos, que transcrevo abaixo um trecho:
A noção do correto, discutida pelos responsáveis da edição de uma das mais recentes obras da gramática contemporânea portuguesa é necessária aqui. Celso Cunha e o português Luís F. Lindley Cintra em seu livro, “Nova Gramática do Português Contemporâneo”, perguntam-se: “Em nome de que princípio se corrige, então, o falar de uma pessoa?”. Os dois professores estão convictos de que, “Uma gramática que pretenda registrar e analisar os fatos da língua culta deve fundar-se num claro conceito de norma e de correção idiomática”. Cunha e Cintra também afirmam que “Os progressos dos estudos linguísticos vieram mostrar a falsidade dos postulados em que a gramática logicista e a latinizante esteavam a correção idiomática e, com isso, deixaram o preceptismo gramatical inerme diante da reação anticorretista que se iniciou no século passado e que vem assumindo, em nossos dias, atitudes violentas, não raro contaminadas de radicalismo ideológico”.16
Ao concordar com estas assertivas, o autor desta monografia ousa defender desde já, em função do histórico do termo “Polaco”, a sua correção e norma como as mais adequadas. Os conceitos emitidos pelos dois gramáticos acima permitem entender que as declarações feitas durante um seminário “Brasil – Polônia”, na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, em 2000, de que a o termo “Polaco” não existe e foi erradicado dos dicionários é uma atitude agressiva daqueles, que como em revanche pelas discriminações sofridas por seus ancestrais, pretendem impor de forma truculenta o termo “polonês”.17 São os mesmos, Cunha e Cintra, que permitem entender este posicionamento retrógrado das elites, que envergonhadas de um passado sob o qual não têm controle, preferem defender outra bandeira: “Por outro lado, à idéia, sempre renovada, de que o povo tem o poder criador e a soberania em matéria de linguagem associase, naturalmente, outra – a de considerar elemento perturbador ou estéril a interferência da força conservadora ou repressiva dos setores cultos.”18
O autor desta dissertação faz coro aos dois gramáticos quando Cintra e Cunha dizem que: “Sem investigações pacientes, sem métodos descritivos aperfeiçoados nunca alcançaremos determinar o que, no domínio da nossa língua ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é correto”.19
Com relação à questão lingüística, o manuscrito de Elena Godoy, apresenta alguns fragmentos que merecem ser apresentados neste trabalho, pois além de traçar um pouco da história desta ciência, faz referência ao uso correto e adequado de um termo sob as luzes da lingüística. Convém reparar que a imposição do termo “polonês” em lugar do “polaco” carece de afirmação científica, como se pode perceber neste relato: Os filósofos da antiga Alexandria, nos sécs. III e II a.C. comparando diferentes manuscritos das mesmas obras procuravam restaurar o texto original e escolher entre os trabalhos genuínos e os não castiços. Devido à língua dos textos clássicos diferir em muitos aspectos do grego contemporâneo de Alexandria, passou-se a publicar comentários de textos e tratados de Gramática para aclarar as dificuldades que poderiam perturbar o leitor dos antigos poetas gregos. A admiração pelas grandes obras literárias do passado encorajou a crença de que a própria língua na qual elas tinham sido escritas era em si mais "pura", mais "correta" do que a fala coloquial cotidiana de Alexandria e de outros centros helênicos. As gramáticas escritas pelos filósofos helenistas tinham então dupla finalidade: combinavam a intenção de estabelecer e explicar a língua dos autores clássicos com o desejo de preservar o grego da corrupção por parte dos ignorantes e dos iletrados.20
Pelo que se deduz desta citação, a preocupação em entender qual das expressões, “pura”, ou “correta” seria a mais adequada foi um dos grandes dilemas da Biblioteca de Alexandria. Ali, já se discutia a noção e “Correto” dos termos. Elena, entretanto, alerta que ocorriam dois erros de concepção bastante importantes e que se ajustam aqui, quando se trata de discutir a aceitação do termo “polonês” pelas novas gerações. As elites que procuraram impor este galicismo só obtiveram sucesso na medida em que conquistaram o apoio dos iletrados para sua causa, fazendo com que os mesmos abominassem o termo antigo: Essa abordagem do estudo da língua cultivada pelo classicismo alexandrino envolvia dois erros fatais de concepção. O primeiro diz respeito à relação entre língua escrita e língua falada, e o segundo, à maneira como a própria língua evolui.
Podemos colocá-los, ambos, dentro do que se pode chamar "erro clássico" no estudo da língua. O segundo erro da concepção inerente à abordagem alexandrina do estudo da língua era a suposição de que a língua dos escritores áticos do séc. V a.C. era mais "correta" do que a fala coloquial do seu tempo; e, em geral, a suposição de que a "pureza" de uma língua é mantida pelo uso das pessoas cultas e "corrompidas" pelos iletrados.21 Ao ser insistentemente interrompido em suas intervenções por usar o termo polaco, naquele seminário “Brasil-Polônia” da Universidade Federal do Paraná, o autor é forçado a admitir que muito pouca coisa mudou nestes mais de dois mil anos. Que “polonês” seja culto e defendido por uma elite e que “Polaco” esteja mais afeito aos ignorantes é fato, que infelizmente percorre as décadas, como confirma em seu trabalho a profª. Godoy: Por mais de dois mil anos esse preconceito ao que parece se manteve inatingível. E é mais difícil erradicá-lo pelo fato de que os termos em que é expresso - "pureza" e "correção" - são tomados como absolutos. Deveria, contudo, ficar bem claro que tais termos nada significam, a não ser em relação a um padrão estabelecido. A afirmação de que a língua de Platão é uma forma "mais pura" do grego, do que, digamos, a de algum artesão iletrado de Alexandria é, por conseguinte, não apenas falsa como também sem sentido ou tautológica.22
Nessa discução de “Correto” e “Adequado” concorrem também especialistas de outras áreas, como por exemplo o sociólogo Nildo Viana23, para quem a linguagem é um fenômeno social e está ligada ao processo de dominação, tal como o sistema escolar, que é a fonte da "dominação linguística". Esta questão remete ao que alguns lingüístas estão definindo como preconceito linguístico.
Evidentemente que num mundo pluralista e democrático haveria de surgir os críticos desta tese, que tem em Bagno seu maior defensor. Os críticos do “Preconceito linguístico” de Bagno argumentam que a tese em si, se levada a cabo, resultaria no descrédito das normas gramaticais, que por sua vez levaria à dificuldade na comunicação entre pessoas no futuro. Não é o caso de nossa temática, mas que pode se aproximar das vias de fato do conflito “Polaco X Polonês”.
Fábio Della Paschoa Rodrigues ao estudar a discussão dos prós. Segundo o Dicionário Houaiss: “Expressão que repete o mesmo conceito já emitido, ou que só desenvolve uma idéia citada, sem aclarar ou aprofundar sua compreensão.” 29
e contras do “Preconceito linguístico” recolhe dos documentos do Ministério da Educação brasileiro a afirmação de que saber falar ou escrever bem é falar ou escrever adequadamente, sabendo qual variedade usar, empregando um determinado estilo e esperando determinadas reações: A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. (...) A questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito pretendido. PCN (1997, pp.31-32).24
Mas quem leva às últimas consequências a crítica ao trabalho de Bagno é José Maria e Silva25. Em sua crítica, este expõe os mandamentos de Bagno para dissecá-los um a um. E o faz com muita rudeza, insinuando que o sociólogo linguista ainda vive embalado pela teses marxistas e desconhece as ações stalinistas. Mas o que importa aqui, não é nem a posição de um, nem a contraposição do outro, mas sim, que um termo não pode ser banido dos dicionários e da língua oficial apenas porque um grupo, ou segmento da sociedade assim o quer, como que por decreto ditatorial. E isto se pode comprovar nos discutidos oito fundamentos de Bagno:
Nº. 1: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente.”.
Nº. 2: “Brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português.”.
Nº. 3: “Português é muito difícil.”.
Nº. 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado.”.
Nº. 5: “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.”.
Nº. 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim.”.
Nº. 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem.”.
Nº. 8: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” 26.
Observa-se aqui uma profunda tentativa de inserção da linguística, enquanto ciência, nas discussões marxistas. O que evidentemente não faz parte dos propósitos desta monografia, mas que ainda assim, permite vislumbrar na questão “Polaco X Polonês”, o quanto a discriminação social, cultural e econômica causa a temas tão simples quanto o uso de determinado termo na língua de um país. Não por outra razão, a simplicidade do tema leva também a consequências extremamente profundas de relacionamentos interétnicos, o que particularmente interessa na discussão deste trabalho.
Godoy lembra que tudo isto não passa de convenção. Foi assim também na antiga Grécia, diz ela. Com a peculiaridade de que naqueles tempos isto era tratado pelos filósofos. Não custa lembrar aqui o que os filósofos gregos discutiam: se o que regia a língua era a natureza, ou a convenção. Essa oposição de natureza e de convenção era um lugar comum da especulação filosófica. Dizer que uma determinada instituição era natural equivalia a dizer que ela tinha sua origem em princípios eternos e imutáveis fora do próprio homem, e era por isso inviolável; dizer que era convencional equivalia a dizer que ela era o mero resultado do costume e da tradição, isto é, de algum acordo tácito, ou contrato social, entre os membros da comunidade – contrato que, por ter sido feito pelos homens, também podia ser violado pelos homens.27
O contrato social, entretanto, na questão aqui apresentada, foi decidido numa festa da elite com representantes do recém instalado governo da Polônia do pós-Primeira Guerra Mundial. Mas é a mesma Godoy quem relata como surgiu a prática da etimologia consciente e deliberada dos filósofos gregos, onde este termo era definido pelo radical etymo.
Crátilo no seu diálogo “Crátilo” afirmava que todas as palavras eram, de fato, apropriadas por natureza às coisas que elas significavam. Para se justificar, ele reportava suas concepções a Platão. Segundo eles, ainda que isso nem sempre pudesse ser evidente ao leigo, podia ser demonstrado pelo filósofo capaz de discernir a realidade que estava por trás da aparência das coisas. Nasceu assim, a prática da etimologia consciente e deliberada. O termo em si – formado do radical grego etymo, verdadeiro, real - denuncia sua origem filosófica. Estabelecer a origem de uma palavra, e por ele, o seu verdadeiro significado, era revelar uma das verdades da natureza. E finalmente Godoy dá pistas para o surgimento da gramática moderna, que após séculos de discussões, viria a ser criada na Espanha, no ano de 1492, coincidentemente o dia da Hispanidade, ou da criação da Espanha como reino, além do “descobrimento” da América.
A disputa entre os naturalistas e os convencionalistas se prolongou por séculos, dominando toda a especulação a respeito da origem da língua e da relação entre as palavras e seu significado. Sua importância para a evolução da teoria gramatical está em que ela deu origem a investigações etimológicas que estimularam e mantiveram o interesse dos estudiosos na classificação das relações entre as palavras. Bem ou mal, ela estabeleceu o estudo da Gramática dentro do arcabouço da indagação filosófica geral.29
Notas:
16 Grifo do autor desta monografia em, CUNHA, Celso – CINTRA, Luís F. Lindley. 2001. “Nova
Gramática do Português Contemporâneo” – 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
17 Em discussão com o ator deste artigo, o empresário curitibano Jorge Benbnowski, depois de uma
série de interrupções das manifestações do autor, o instou a se calar e não ousar pronunciar o termo
“Polaco”, pois segundo o empresário, esta não existe e foi erradicada da norma culta vigente no
país.
18 Grifo do autor desta monografia.
19 Ibid, pág.5
20 GODOY, Elena. 2001. Manuscrito. “Lingüística”. Departamento de Letras. UFPR.
21 Idem.
23 Wikipedia. “Preconceito Lingüístico”. Acessado em 27 de agosto de 2006, em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Preconceito_ling%C3%BC%C3%ADstico.
15 HOUAISS, Antonio. 2002. “Dicionário Houaiss da língua portuguesa”. São Paulo. Editora
Objetiva.
24 RODRIGUES, Fábio Della Paschoa “Preconceito lingüístico”. Acessado em 27 de agosto de
2005, em http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/p00003.htm.
25 Idem.
26 SILVA, José Maria. 14 de novembro de 2002. “O Mito do preconceito lingüístico”. IN:
BAGNO, Marcos. 2001. “Preconceito lingüístico”. Edições Loyola. São Paulo. Acessado em 27
de agosto de 2006, em http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=166
27 GODOY, Elena. 2001. Manuscrito. “Lingüística”. Departamento de Letras. UFPR.
28 Idem.