domingo, 17 de março de 2019

Panorama polaco no contexto europeu

“O que alimenta hoje o populismo é a crise dos meios de comunicação tradicionais”

Marcin Zaborowski - Foto: Olgierd Syczewski
Acadêmico e investigador do think tank Visegrad/Insight, onde pensa a política externa polaca e a sua relação com a Europa, antigo diretor do Instituto de Assuntos Internacionais de Varsóvia e colaborador do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, Marcin Zaborowski conjuga uma visão atual do que se passa no seu país e uma visão global da União Europeia. "A Polônia está isolando-se cada vez mais da Europa", é uma das principais conclusões.

De modelo de transição, a Polônia é hoje um exemplo de uma democracia iliberal onde a independência dos tribunais está posta em causa. Pode não ser tão grave como a deriva húngara, mas afasta a Polônia dos seus parceiros europeus. Há, mesmo assim, uma possibilidade de a oposição conseguir vencer as eleições europeias de maio, apesar do controle governamental das televisões estatais do país. Até porque os polacos continuam a ser fortemente pró-europeus. A vantagem do Partido Direito e Justiça, que governa o país desde 2015, foi a sua política social, depois de um longo período de políticas liberais preocupadas com o déficit, mas não com a redistribuição da renda.

Público - A Polônia foi um verdadeiro modelo na transição democrática e na transição econômica. Quis assumir o status de um dos seis grandes países da União Europeia. De repente, tudo parece ter mudado na sua relação com a democracia e com a Europa. O que é que correu mal?

Zaborowski Temos de recuar até às eleições de 2015, ganhas pelo PiS - Partido Direito e Justiça. Havia alegações de corrupção em relação aos partidos do anterior Governo, os eleitores estavam cansados, queriam uma outra opção. E, no nosso sistema de coligações, a outra opção possível questionava abertamente algumas das bases da nossa ordem constitucional. Não se tratou, como em outros países europeus, de mudar da centro-direita para a centro-esquerda. Tratou-se de mudar de uma coligação que cumpria a Constituição para outra que questionava os próprios fundamentos constitucionais do sistema. Parte da explicação para esta mudança é interna. O PO - Plataforma Cívica estava no poder há oito anos e não tinha dado a devida atenção às políticas sociais.

Público - Mas a economia estava muito bem e, aliás, continua muito bem.

Zaborowski É verdade, continua. Mas, na percepção de muita gente, os ganhos da economia tinham sido distribuídos de forma muito desigual. Quando o Partido Direito e Justiça chegou ao poder, em 2015, adotou um programa social que, em termos de distribuição de rendas, era melhor e que lhes conquistou muito apoio. A vitória do PiS foi um misto entre essa preocupação social e a defesa de valores muito conservadores no que toca à relação entre o Estado e a Igreja, por exemplo, com uma forma de gestão da economia que se poderia dizer mais à esquerda. A alternativa anterior, no que toca à gestão econômica, era mais liberal e, em termos orçamentais, muito prudente e muito conservadora. Nunca tínhamos tido uma opção de governo que fosse claramente num sentido mais redistributivo. Este Governo atual criou, por exemplo, novos benefícios para as crianças ou para quem tivesse um segundo filho. Foi a primeira vez que as pessoas viram o Governo dar-lhes alguma coisa de concreto. E os polacos, é bom lembrar, gostam que o Estado os proteja, em boa medida devido à própria herança do regime comunista. Depois, o Governo também foi ao encontro de uma população crente, que vai à Igreja, que mantém valores sociais bastante conservadores e que tem, ao mesmo tempo, muitas expectativas em relação ao papel do Estado nas suas vidas.

Público - Quatro anos depois da chegada do PiS ao poder, quais são as principais consequências desta rejeição da ordem constitucional no que respeita ao funcionamento da democracia liberal?

Zaborowski Dois tipos de consequências. A primeira é a alteração do funcionamento do poder judicial. Continuamos a viver numa democracia mas deixamos de ser uma democracia liberal, assente na independência dos tribunais. A Polônia continua a ser uma democracia, porque o Governo foi eleito e não pôs em causa o sistema eleitoral. Quando o PiS ganhou a maioria, não conseguiu votação suficiente para alterar a Constituição. Portanto, o que o Governo está tentando fazer é mudar alguns aspectos da forma como os tribunais funcionam. Começou com um ataque ao Tribunal Constitucional, através da forma como os juízes são escolhidos. Depois, tentou mudar a lei de funcionamento do Supremo Tribunal, alterando a idade da aposentadoria dos juízes. A opinião pública se manifestou fortemente contra isso e eles tiveram de recuar. A outra tentativa foi em relação ao Procurador-Geral, que passou a ser basicamente o ministro da Justiça. Antes, era uma instituição completamente separada. Eles fundiram o papel do Procurador-Geral com o cargo do ministro. Também falharam na alteração às regras de funcionamento do Supremo Tribunal devido às pressões da União Europeia. Em síntese, tem havido um permanente assalto à independência dos tribunais ainda que até agora com resultados mistos. Mas, essencialmente, isso significa que já não vivemos num democracia liberal mas naquilo a que hoje chamamos, em oposição, de democracia iliberal.

Público - O segundo “ataque” foi aos meios de comunicação social?

Zaborowski Sim. A segunda grande questão é a da independência dos meios de comunicação social. Quando chegaram ao poder, mudaram o regime de funcionamento dos órgãos de comunicação social públicos. Antes, a imprensa pública era supervisionada por um conselho constituído por uma representação de partidos políticos e por pessoas da sociedade independentes do Governo. Mudaram a lei e agora todos os diretores dos canais públicos de televisão são diretamente nomeados pelo Governo. Deixaram de ser públicos para passarem a ser governamentais. Deixaram de ser livres para passarem a ser órgãos de propaganda.

Público - E os meios de comunicação social privados. Ainda são livres?

Zaborowski Ainda funcionam com liberdade, mas o Governo tenta controlá-los de outras formas, por exemplo, através do controle das empresas que os detêm. Mas mesmo assim, na sua maioria, mantêm-se independentes.

Público - Podemos dizer que as próximas eleições, que serão as europeias, ainda podem ser realizadas numa base essencialmente livre?

Zaborowski Livre, sim. A questão é se serão justas. Nem todas as pessoas terão o mesmo acesso à informação. A oposição não terá o mesmo acesso aos órgãos de comunicação públicos, sobretudo às televisões, que apresentam as questões de uma forma enviesada, sempre favorável ao Governo.

Público -  Como sabe, há muita gente na Europa que diz que a grande batalha pela alma europeia será travada na Polônia. A oposição tem alguma possibilidade de vencer as eleições europeias?

Zaborowski Até agora, as sondagens indicam um empate — 50% de probabilidades para cada lado [as mais recentes pesquisas de opinião pública indicavam que a Coligação a favor da Europa estava à frente do PiS, com 35% para 33%, respectivamente]. Os partidos da oposição moderada conseguiram se unir numa ampla plataforma política — a “Coligação Europeia” — que inclui o  PO - Plataforma Cívica, sociais-democratas, ex-comunistas, “verdes” e que representa uma grande aliança pró-democrática. Nas pesquisas, ou estão ligeiramente à frente ou pouco atrás do partido governamental. Seja como for, as eleições vão ter um resultado muito decente. Mas o Governo não está inativo e já anunciou mais uma série de medidas sociais muito populares, por exemplo, o aumento das pensões, mais benefícios para as crianças, isenção de impostos para quem tenha menos de 26 anos. Vamos ver que impacto isso terá nos resultados.

Público - Podemos dizer que, além dessa dimensão estritamente doméstica, a grande divisão é entre partidos que são claramente pró-europeus e partidos, como o do Governo, com uma posição na melhor das hipóteses muito crítica da União Europeia?

Zaborowski Estas eleições serão, como você se referiu, muito importantes para a Europa, sob muitos aspectos. O partido de [primeiro-ministro húngaro] Viktor Orbán vai ter, possivelmente, de abandonar o Partido Popular Europeu [PPE, centro-direita] e, se tal acontecer, pode vir a se juntar ao grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus, do qual o PiS da Polônia faz parte e também ainda os Conservadores britânicos. Se isso acontecer, mesmo com a saída dos britânicos, pode tornar-se no terceiro maior grupo parlamentar do Parlamento Europeu.

Público - Voltando à questão europeia, quando o PiS conquistou o poder anunciou que a Polônia “deixaria de estar de joelhos” perante a União Europeia. Isto quer dizer que há um sentimento generalizado de rejeição à Bruxelas? Que é uma espécie de novo império, ainda que mais benigno?

Zaborowski Os polacos não compram essa ideia. As razões pelas quais votaram no PiS não foram essas, nem foram sobre o seu programa europeu, mas antes, como já referi, pelas suas promessas de natureza social. Uma vasta maioria dos polacos continua a ser muito pró-europeia. As pesquisas apontam para índices acima dos 80%, correspondendo ao resultado do referendo sobre a adesão em 2003. Além disso, a Polônia continua a ser a maior beneficiária líquida do orçamento europeu. As pessoas percebem que o país mudou e continua a mudar, em boa medida graças ao apoio da União Europeia. É isso que as pessoas realmente sentem. A propaganda do Governo vai no sentido que se referiu — que a Europa nos impõe coisas que não queremos —, mas não está, claramente, dando resultados. E eles perceberam isso e já adaptaram a sua mensagem. Agora, dizem que não são contra a Europa, dizem apenas que a Europa foi longe demais e que são eles os verdadeiros europeus. Também insistem em que o “Brexit” é culpa da União Europeia e não dos britânicos. O Reino Unido é, talvez, o único país da União Europeia com quem têm boas relações. Mas, no geral, estão hoje bastante isolados no quadro da União. Tentam ser muito pró-britânicos e, muito mais ainda, pró-América.

Público - Com a concretização da saída do Reino Unido, vão perder o seu principal aliado. Que alternativas têm?

Zaborowski Não muitas. Em primeiro lugar, a Hungria de Viktor Orbán. Mas também mantêm conversações com [o vice-primeiro-ministro italiano e líder da Liga] Matteo Salvini. Ele esteve aqui recentemente, teve um encontro com Jarosław Kaczyński, o verdadeiro líder do PiS. Mas há um problema nesta relação: eles consideram que Salvini é demasiado pró-russo. Não o suficiente para não poderem entender-se em algumas questões com ele, mas mesmo assim demasiado. Mas a sua característica principal é serem muito, mas mesmo muito pró-América, quase numa reprodução dos tempos da Guerra Fria.

Público - Percebe-se que sejam pró-americanos também porque atribuem, com razão, aos Estados Unidos a libertação do império soviético. Aliás, como os outros países da Europa Central e de Leste. Li recentemente um dos seus textos sobre a política externa polaca em que a define como “America First”. O que quer exatamente dizer com isso?

Zaborowski Tem razão, quando diz que os polacos são, de um modo geral, pró-americanos, pelas razões que mencionou. Aliás, a Coligação Europeia é igualmente pró-americana. Mas agora a questão é a do reforço da cooperação militar com os EUA e é, sobretudo, no sentido em que o Governo gosta de Donald Trump e do seu comportamento político, que se assemelha muito ao que ele próprio pratica. Além disso, o fato de se sentirem isolados na União Europeia leva-os a este “saltoem direção aos Estados Unidos. Mesmo que, muitas vezes, as coisas também não aconteçam exatamente como eles desejariam.

Público - Podemos dizer que é mais pró-Trump do que pró-Estados Unidos?

Zaborowski Sim. É a maneira certa de colocar a questão. Você viu, com certeza, as notícias sobre a conferência sobre o Oriente Médio que se realizou recentemente em Varsóvia.

Público - Sim.

Zaborowski O Governo quis oferecer a Washington uma iniciativa política que era do interesse estritamente americano, mas nem tudo lhe correu bem. A conferência não significa que a Polônia tenha um particular interesse no que se passa no Oriente Médio, apenas que quis agradar a Trump, que estava muito interessado nela, sobretudo por causa do Iran, para encontrar uma maneira de pressionar os europeus em relação ao acordo nuclear com Teerã. Mas isso acabou por não funcionar, como certamente você reparou. A participação europeia foi limitada e muitos governos europeus manifestaram o seu descontentamento com a iniciativa polaca, deixando a Polônia ainda mais isolada. Além disso, a pretensão do Governo de convencer os americanos a instalar uma base militar na Polônia, pela qual dizem que estão dispostos a pagar 2 mil milhões de dólares, não teve qualquer sucesso até agora. Apenas irritou os aliados europeus e a própria NATO. O PiS também quer ter uma boa relação com Israel, ou melhor, não tanto com Israel, mas sobretudo com o Governo do Likud.

Público - Houve, aliás, durante a conferência um desentendimento em relação a Israel e aos judeus, que não correu muito bem ao Governo polaco e que levou um distanciamento dos próprios Estados Unidos. Creio que foi a propósito da lei, muito polêmica, que criminaliza qualquer referência que considere que os polacos tiveram alguma coisa a ver com a perseguição dos judeus e com o Holocausto. Isto significa que a questão judaica está outra vez presente no debate público polaco?

Zaborowski O PiS não é um partido antissemita, convém sublinhar isso. Mas é um partido muito nacionalista. Quando fizeram aprovar essa lei, não creio que fosse por antissemitismo mas apenas porque querem libertar a nação polaca de qualquer responsabilidade pelo Holocausto e por Auschwitz. Mas os americanos são sempre muito sensíveis neste domínio, com a Polônia ou com outro país qualquer, e não deixaram de criticar o Governo. As pressões internacionais, principalmente dos EUA e de Israel, em relação a essa lei acabaram por levar o Governo a recuar, abrindo uma exceção para a investigação histórica. Mas, em relação à conferência, os israelitas não mostraram qualquer gratidão, pelo contrário, renovaram as suas alegações históricas, os americanos dirigiram o espetáculo, assinaram alguns contratos de defesa, mas não prometeram absolutamente nada.

PiS não é um partido antissemita, convém sublinhar isso. Mas é um partido muito nacionalista". Na foto: Jarosław Kaczyński, "o verdadeiro líder do PiS" -Foto : Kacper Pempel/REUTERS
Público - Qual tem sido exatamente o papel da Igreja Católica no apoio ao Governo?

Zaborowski A Igreja polaca se tornou muito política e, na sua maioria, apoiou o partido do Governo. E isso compreende-se porque o PiS é muito conservador em matéria de costumes, desde a oposição ao casamento entre homossexuais até às políticas mais liberais nesta questão que são hoje comuns na União Europeia. Mas isso também tem tido um efeito não desejado. As pessoas são católicas, vão à Igreja, mas não é isso que determina as suas posições políticas. O Prefeito da cidade de Gdańsk, da oposição, que foi assassinado no passado mês de janeiro durante uma festa de caridade, era um católico praticante. Agora, há muita gente como ele que começa a deixar de ir à Igreja. A Igreja teve um papel fundamental na unificação do país e mas está a correr o risco de perder esse papel. Há aqui também uma mudança importante.

Público - Nesta crise existencial que a Europa atravessa, muitos analistas têm referido uma linha de fratura cada vez mais acentuada entre o Leste e o Ocidente. O que é que há de comum entre, por exemplo, os países de Visegrado, que justifique esta divisão?

Zaborowski Os países de Visegrado são muito diferentes entre si e na sua relação com a Europa. Há países do Leste (na verdade da Europa Central) que já são membros da zona euro, por exemplo. Alguns deles são democracias estáveis. Mas, no conjunto, sofrem das mesmas dificuldades de consolidação democrática que é comum aos países da Europa do Leste. As suas democracias não são tão sólidas como chegou a parecer há alguns anos, são ainda muito recentes e a sua independência em relação à União Soviética também. A questão-chave, creio eu, é a questão dos meios de comunicação social e nem sequer é apenas um problema apenas desses países. Nas democracias consolidadas, os meios de comunicação tradicionais também atravessam uma crise profunda, que resulta da presença crescente das redes sociais e de uma nova forma de comunicação. E isso é ainda mais evidente nesses países, onde os órgãos de informação tradicionais e a liberdade de imprensa nunca chegaram a ser tão fortes. Além disso, nesses países, boa parte dos meios tradicionais ou são controlados pelos governos, ou estão muito dependentes dos contratos com os governos.

Público - Mas é correto dizer que os problemas com a democracia são os mesmos na Polônia, República Tcheca, Eslováquia ou Hungria? Que são todos iguais?

Zaborowski Não. A Hungria é o caso mais grave. Basta olhar para o mais recente relatório da Freedom House, onde a Hungria já não está no grupo das democracias consolidadas. Na Polônia, as coisas também não estão bem, como já vimos, mas ainda é considerada como um país onde pode haver eleições suficientemente livres para alterar a situação, mesmo que a Freedom House tenha insistido, nos seus últimos relatórios que a democracia tem se deteriorado desde 2015. As coisas variam em termos de transparência do sistema mas, para além da Hungria, nesses países ainda é perfeitamente possível mudar de governo. Na República Tcheca e na Eslováquia há uma grande influência da Rússia, sobretudo através das redes sociais e dos meios eletrônicos, mas, de um modo geral, as coisas correm bem. Por exemplo, nos dois países ainda há um consenso político pró-europeu relativamente grande. Não houve, nem em um nem em outro, qualquer ataque ao poder judiciário, como aconteceu na Polônia. Por isso, não se deve meter todos no mesmo saco.

Público - A Alemanha fez um grande esforço de aproximação com Varsóvia, mas o atual Governo polaco trata tão duramente Bruxelas como Berlim. Como é que o senhor vê hoje o papel da Alemanha na União Europeia e também na Polônia?

Zaborowski Para a Polônia, como um pouco de frustração, na verdade. Para a Polônia, é uma relação muito importante, talvez a mais importante, e tem sido mutuamente benéfica. Mas o Governo alemão não faz qualquer crítica ao Governo de Varsóvia. Claro que por razões históricas, Berlim evita sempre criticar qualquer governo polaco. As relações continuam a ser normais, há reuniões entre os governos. Mas, aqui, o Governo de Berlim é bastante criticado por não dizer nada sobre o que se passa com o Governo polaco e com a democracia. Mas, naturalmente, a Alemanha é ainda a potência indispensável. Foi essencial no lançamento e na preservação da integração europeia. Foi também o motor fundamental da ampliação em direção a Polônia e aos outros países da Europa Central e do Leste. Se, depois da II Guerra, a Alemanha se aproximou da França para viabilizar a integração europeia, depois da Guerra Fria fez a mesma coisa em relação à Polônia. Contudo, como outras nações, a Alemanha também é uma potência egoísta, que pensa em primeiro lugar nos seus próprios interesses.

Público - Berlim está de novo patrocinando uma nova ligação direta entre a Rússia e a Alemanha para a importação de gás — o Nord Stream II. Houve um coro de protestos na Polônia, quando o Nord Stream I (lançado em 2005 por Putin e o anterior chanceler Gerhard Schroeder) foi construído. Como é que se vê aí este comportamento?

Zaborowski O Nord Stream II é um exemplo clássico desse comportamento egoísta que ignora os interesses e as percepções das nações que estão entre a Alemanha e a Rússia, incluindo a Polônia. Mesmo assim, a relação entre a entre os dois países é demasiado rica e demasiado importante para permitir que este desentendimento a prejudique, até porque é essencial para a estabilidade do continente europeu.

Público - Como alguém que conhece muito bem a União Europeia, como é que o senhor vê esta crise profunda que atravessa? É possível ultrapassá-la? Até porque o nacionalismo não é apenas um problema polaco. É um problema europeu.

Zaborowski Creio que a União Europeia lidou bem com a crise do euro, que chegou perto da ruptura da zona euro. A União saiu dela mais forte e mais integrada — principalmente com a criação da União Bancária e do Pacto Orçamentário. A confiança dos países europeus na moeda única é mais forte agora. Mas a Europa não lidou da mesma maneira satisfatória com a crise migratória de 2015, que revelou mais desunião do que união. A União também ainda não conseguiu responder ao desafio do populismo, que começou na Europa Central — com Orbán e Kaczyński — e que desde aí se propagou para outros países. O populismo também alimentou o “Brexit” e a eleição de Trump. Não é apenas um problema europeu mas uma crise mais ampla das democracias liberais do Ocidente que, em larga medida, perderam o contacto com os eleitores. Mas também o que alimenta hoje o populismo é a crise dos meios de comunicação social tradicionais. Creio que a União Europeia devia investir recursos significativos nos órgãos de informação tradicionais para garantir que as pessoas continuem a ter acesso a uma informação credível e variada.

Público - A envolvente política externa da Europa mudou radicalmente nos últimos anos. Trump não gosta da integração europeia, rompendo com uma política americana que se manteve desde a guerra. A Rússia voltou a ser uma ameaça. A China decidiu entrar no jogo. A Europa está preparada para lidar com estas mudanças profundas?

Zaborowski Não creio que esteja. Os Estados Unidos, com a presidência de Donald Trump, deixaram de apoiar a integração europeia. Para ser mais exato, estão trabalhando diretamente para quebrá-la. A Rússia utiliza qualquer oportunidade para enfraquecer o Ocidente e a União Europeia, que é o seu principal “concorrente” na Ucrânia, Bielorrússia, Geórgia ou Moldava. A China continua a ser um concorrente econômico, mas ainda não parece estar tentada a quebrar a União Europeia. A Europa deixou de poder contar com ao apoio geopolítico dos EUA. Precisa contar consigo mesma, o que também quer dizer que não pode continuar a seguir a América. Tem todas as condições para se transformar numa verdadeira potência mas a questão que se mantém é saber se tem a vontade necessária.

Fonte: Público, Lisboa
Texto: Natália Faria e Teresa de Souza
Adaptação para o português do Brasil: Ulisses Iarochinski

terça-feira, 5 de março de 2019

Polônia está importando gás natural liquefeito dos EUA


Enormes petroleiros entram no porto do Mar Báltico duas vezes por mês, transportando gás natural liquefeito de produtoras do Catar, da Noruega e, cada vez mais, dos Estados Unidos. O combustível ajudará a fornecer luz e calor a milhões de lares polacos, reduzindo gradativamente a dependência do país do carvão. (a única matriz energética da Polônia é o carvão que alimenta suas termoelétricas, já que o país não possui hidroelétricas (por ter um território com 95% de planícies e não tem usinas nucleares)

Este combustível constitui também um importante instrumento de estratégia política. A Polônia está determinada a acabar com a dependência da energia russa, no âmbito de um esforço maior da Europa visando diversificar o fornecimento de energia para a região.

Uma instalação, em Świnoujscie, recebeu o nome de Lech Kaczyński, o presidente polaco que morreu em um desastre aéreo em Katyń, na Rússia (ainda não totalmente esclarecido, se realmente foi um acidente ou sabotagem russa).

Foto: Krzysztof Pacholak -The New York Times
As relações com a Rússia foram tumultuadas por divergências políticas, bem como pelo papel da Polônia, antigo satélite soviético, na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O país encontrou um rápido substituto nos Estados Unidos, que têm abundância de gás natural em razão do boom do xisto betuminoso, e um incentivo político para reduzir o domínio da Rússia sobre a Europa.

Depois de passar ao estado líquido por um processo de condensação por esfriamento, o gás natural pode ser transportado ao redor do mundo. As companhias americanas agora têm contratos que durarão dezenas de anos e prometem abastecer a Polônia com o equivalente a cerca da metade das suas atuais necessidades de importação de gás.

“Dada a escolha de fornecedores e um bom acordo comercial, a Polônia ficou feliz de comprar o produto americano”, disse Davis L. Goldwyn, que foi enviado internacional para energia para o Departamento de Estado americano no governo Obama, e agora é diretor de uma empresa de assessoria, a Goldwyn Global Strategies.

A decisão da Polônia está associada a este porto em Świnoujscie. Há dez anos, um conflito entre a Rússia e a Ucrânia deixou a Polônia e alguns dos seus vizinhos no frio quando a gigante do petróleo russo, a Gazprom, fechou um oleoduto crucial por três semanas por causa de uma disputa de preços de motivação política. Grande parte do gás que a Rússia exporta para a Europa passa pela Ucrânia.

Com o fechamento de 2009, a Polônia decidiu construir um terminal de gás natural liquefeito, que custou, ao que se calcula, um bilhão de euros, em parte financiado pela União Europeia.

“A estratégia da companhia é simplesmente esquecer as fornecedoras do Oriente, e particularmente a Gazprom”, disse Piotr Wożniak, presidente da PGNiG, uma companhia listada em bolsa, mas controlada pelo Estado que domina o mercado do gás da Polônia. “Para nós, este é um novo mundo”, acrescentou Wożniak. “Quando pago aos americanos, estou pagando aos meus aliados na OTAN”.

O porto já está reformulando as relações da Polônia com a Rússia. As entregas da gás do Catar começaram em 2015, e foram suplementadas por embarques de produtores como a Noruega e os Estados Unidos. A PGNiG diz que os embarques de exportação de gás natural liquefeito subiram quase 60% no ano passado, em comparação com 2017, reduzindo em 6% as importações da Rússia e do Oriente. A Rússia fornece atualmente cerca da metade do combustível da Polônia.

O gás natural liquefeito abalou a política do oleoduto, criando a concorrência para fornecedoras antigas como a Gazprom. As importações globais de gás natural liquefeito cresceram mais de 9% no ano passado, uma porcentagem muito mais rápida do que a do petróleo ou do gás, segundo a Rystad Energy, uma companhia de pesquisa de mercado. Os EUA estão prestes a se tornarem líderes globais como Catar nas próximas décadas.

Neste ambiente, trava-se uma espécie de Guerra Fria entre fornecedores de energia como a Rússia e a Argélia, e as novas exportadoras dos Estados Unidos. No passado, a Alemanha dependia dos oleodutos russos, e a maior economia da Europa certamente necessitará de combustível russo no futuro. Berlim está permitindo a construção de um novo enorme oleoduto sob o Mar Báltico saindo da Rússia, chamado Nordstream 2 - para desagrado da Polônia e dos EUA.

O preço também é um problema; os do gás são estabelecidos em grande parte pelos mercados financeiros, e a Rússia pode produzi-lo a baixo preço. A perspectiva da concorrência bem como de processos antitruste movido pela União Europeia, obrigaram a Gazprom a modificar a sua política.

Em grande parte da Europa, a gigante russa modificou os termos dos contratos a fim de refletir os preços de mercado do gás e não o preço do petróleo, que pode ser extremamente diferente, segundo Jonathan Stern, um conceituado pesquisador sênior do Oxford Institute for Energy Studies.

No caso da Polônia, a política pode em última análise determinar o preço. O governo pretende expandir estas instalações, que atualmente têm capacidade para importar cerca de 25% das necessidades anuais da Polônia. Também pretende construir um oleoduto a partir da Noruega, onde a PGNiG controlada pelo Estado está investindo em uma rede de campos de gás com a finalidade de isolar a Polônia de interferências políticas.

“O preço do comércio é apenas um componente”, do gás natural liquefeito, disse Jeffrey W. Martin, presidente e principal executivo da Sempra Energy em San Diego, que assinou um contrato de fornecimento com a Polônia de uma fábrica planejada no Texas, no ano passado. “A segurança do fornecimento é um grande problema”.

Fonte: O Estado de São Paulo
Melissa Eddy e Andrew E. Kramer contribuíram para a reportagem.