quarta-feira, 27 de março de 2024

Anita Dolly Panek nie żyje

Anita Dolly Panek

"Nie żyje", no idioma polaco a expressão quer dizer que a pessoa faleceu. E foi isso que aconteceu nesta quarta-feira, dia 27 de março, em Cracóvia. A cientista Anita Dolly Panek deixou este plano de vida.

Polaca de origem judaica asquenaze, Anita Haubenstock, nasceu em Cracóvia em 1.º de setembro de 1930. Viveu no Brasil desde 1940, quando não pode voltar para Cracóvia por causa da Segunda Guerra Mundial.

Ela e seus pais estavam na França, iriam retornar para a ulica (rua) Batorego, n.º 17, no centro histórico de Cracóvia, no dia 1.º de setembro. Seus pais, Emil e Waleria Regina devido a esta decisão forçada, abandonaram todos seus bens e pertences, na Polônia.

Os familiares que não viajaram para a França com a menina Anita, Emil e Waleria foram aprisionados nos Campos de Concentração e Extermínio Alemão, nas cidades de Oświęcin e Brzezinka, os famosos Auschwitz e Birkenau. Uma dessas pessoas era a avó materna, Franciszka.

A menina Anita com o pai Emil

Aquela situação era desesperadora, as notícias de bombardeios e escaramuças de guerra na terra natal, imobilizava-os. Para piorar ainda mais a situação foram forçados a fugirem dali, em junho de 1940, quando os alemães tomaram Paris e os franceses capitularam.

A família de polacos de origem judaica não tinha mais abrigo naquele mundo enfurecido pelo ódio humanitário. Os Haubenstock fugiram à noite, a pé, pela fronteira com a Espanha. O dinheiro tinha acabado e as joias ficaram em Cracóvia.

Afinal, seriam apenas uns dias de descanso nas praias francesas.

Quem pensaria que o mundo estaria em guerra alguns dias depois e que o alvo principal dos nazistas, naqueles primeiros momentos, era justo a Polônia?

Quando tentavam conseguir visto de saída, os Haubenstock souberam que a quota para judeus emigrarem aos Estados Unidos estava esgotada. As únicas possibilidades eram Haiti e Brasil. 

A jovem Anita e a mãe Waleria num Café, no Rio de Janeiro

Anita contava que, “chegamos ao Rio no último navio que saiu da Europa, o Serpa Pinto. Para as passagens de segunda classe, Helena Rubinstein, prima de minha mãe, conseguiu nos enviar emprestados 250 dólares.” 

No Brasil, aqueles três cracovianos, passaram a viver no Rio de Janeiro. Onde, no final dos anos 1940, ingressou no curso de Química da então Universidade do Brasil (UFRJ). Diplomou-se em 1954 em Química Industrial e em 1955, tornou-se Instrutora de Ensino na Cadeira de Microbiologia Industrial e Tecnologia das Fermentações da mesma instituição.

Casou-se com o polaco Józef Panek com quem teve a filha Ana Cristina.

Em 1962 obteve seu doutorado em ciências pela mesma universidade, seguindo da livre-docência em Microbiologia Industrial. Em 1976, virou professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e em 1995 foi proclamada Professora Emérita.

Criou um laboratório que acabou sendo mundialmente reconhecido. Publicou mais de 170 trabalhos em revistas especializadas. Orientou 50 alunos em cursos de pós-graduação. 

Membro da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular e da Academia Brasileira de Ciências, membro também da American Society for Biochemistry and Molecular Biology. Recebeu, em 1996, a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico da Presidência da República do Brasil.

A ficha consular da mãe Waleria Regina - filha de Adam e Franciszka

Não bastasse toda a angústia dos primeiros anos de vida, da fuga forçada pela segunda guerra mundial, as dificuldades dos trópicos, dos estudos, da vida dividida entre duas nações (Brasil e Polônia), Anita levou uma rasteira das mais absurdas aos 85 anos de vida.

Os crimes contra Anita aconteceram quando ida de seu neto Carlos, filho de Ana Cristina e Pedro para estudar na Polônia. Anita então, por causa do neto estar vivendo em sua terra natal, finalmente decidiu retornar à Cracóvia.

Ela gostou tanto, que passou a frequentar a cidade, através da ponte aérea São Paulo-Cracóvia. Suas contas bancárias e seu salário de professora aposentada haviam sido bloqueadas. Seu advogado de muitos anos, de quem fora fiadora, não havia pagado suas dívidas, que acabou recaindo sobre Anita. 

A vida no retorno a Cracóvia

O desgosto foi muito grande e assim aos 85 anos, a brasileira naturalizada, decidiu passar o resto de sua vida, na sua amada rainha do rio Vístula: Cracóvia. Morou nos últimos anos no bairro judeu da Cracóvia, o Kazimierz.

Anita Dolly Panek aos 93 anos deixa a filha Ana Cristina, o genro Pedro, os netos Carlos e Antonia e os bisnetos Anthony e Logan.

Anita e a filha Ana Cristina, em Cracóvia


quarta-feira, 13 de março de 2024

OS MONSTROS SÃO PESSOAS COMUNS

Cena do filme

Sim, assisti ao filme "Zona de Interesse"! Sim, acompanho diariamente na internet o genocídio em Gaza! Sim, leio todos os dias em diversos sites sobre os ataques da invasão russa!

E observo também, nos telejornais brasileiros, a proteção excessiva ao governo de Israel. Vejo o comandante das Forças Armadas Israelenses fazendo pronunciamentos sóbrios e comedidos, sempre com uma expressão natural. Assim como testemunho o ministro das Relações Exteriores de Israel, de maneira jocosa e irresponsável, criar piadas - os chamados memes - contra o presidente brasileiro Lula.

Tudo isso acontece com uma aparente tranquilidade!

Exterminar um povo, diga-se de passagem, não é privilégio exclusivo dos nazistas ou dos sionistas. No passado, com as bênçãos do Papa devasso Alexandre VI, os espanhóis católicos exterminaram as civilizações Araucana no Chile, Inca no Peru e Asteca no México. A única exceção foi a Maia da América Central, que já havia desaparecido da face da Terra.

Mas sim, assisti ao filme "Zona de Interesse". Confesso que fiquei intrigado com o título desde domingo, quando este filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2024 e o Oscar de Melhor Som de Johnnie Burn e Tarn Willers.

Em polaco, intitulado "Strefa Interesów", em inglês "The Zone of Interest" e em português tenho lido como "Zona de Interesse". Para mim, todos ambíguos, já que a divulgação do filme informa que se trata de uma família que vive além do muro do Campo Alemão Nazista de Concentração e Extermínio, na cidade polaca de Oświęcim, mundialmente conhecida como Auschwitz.

Cartaz do filme nos cinemas da Polônia

Fui encontrar no texto do jornalista polaco Łukasz Mańkowski, do portal onet.pl, a origem do título, "a 'zona de interesse' (do alemão Interessengebiet) que se referia à área de 40 km ao redor do Campo Auschwitz. Foi daí que, em 2014, o escritor Martin Amis escreveu um livro com o mesmo título.” 

Esse livro serviu de ponto de partida para o filme de Jonathan Glazer. O cineasta britânico buscou expressar sua visão sobre a crueldade do genocídio nazista ao reduzir a "zona" presente no título a imagens da vida cotidiana, apenas um registro trivial de uma determinada família privilegiada, desligada do mundo que existe ao seu redor.

O diretor Jonathan Glazer

O resultado do trabalho artístico do cineasta se traduz em sequências com um ritmo singular. Glazer, com a ajuda de uma centena de produtores e técnicos polacos, criou uma obra devastadora, vanguardista e, acima de tudo, penetrante. Sim, porque aquele andamento britânico de imagens calmas e belas, captadas pelo diretor de fotografia polaco Łukasz Żal, vai consumindo o espectador, que espera por um desfecho, no mínimo, violento.
Łukasz Żal

Apesar da estética marcante, do forte simbolismo e da constante tentativa de perturbar a área de conforto do público por meio de sons, ruídos, barulhos, gritos e latidos que ecoam ao longe, o filme é uma obra profundamente conectada ao presente.

Confesso que, durante a projeção, a vontade é sair da sala, pois aquele barulho surdo vai penetrando, incomodando...

- "O que estou fazendo aqui?"
- "Onde estão as imagens fortes dos crematórios, das câmaras de gás, dos fuzilamentos?"
- "Mas afinal, este não é um filme sobre o Holocausto?"

São perguntas que insistem em surgir na mente. E o diretor, com este filme aparentemente tranquilo, está fazendo uma acusação. Não apenas para os personagens do filme, mas para mim, para você que me lê.


A produtora polaca Ewa Puszczyńska

Ao retratar a indiferença do comandante alemão Rudolf Franz Ferdinand Höss e sua família diante do que está acontecendo atrás daquele muro de tijolos vermelhos, ele também está falando da indiferença de todos nós diante dos conflitos que assolam o mundo, como as mortes na Ucrânia e o genocídio de crianças, mães e idosos em Gaza.

O filme "Zona de Interesse" é apresentado como um drama familiar comum. A verdadeira mensagem emerge do que está em segundo plano, nos sons e na cuidadosa representação da banalidade do mal que o diretor encontra na dinâmica do cotidiano, na vida aparentemente comum dos monstros da humanidade.

Se não fossem os sons na abertura do filme, com o quadro claramente esticado e o título, não saberíamos que se tratava de um retrato cinematográfico do Holocausto.

Rudolf, Hedwig e seus filhos vivem próximos ao Campo de Concentração e Extermínio de Auschwitz.
 
O ator e cantor alemão Christian Friedel no papel de Höss

As paredes da casa dessa família alemã são literalmente as paredes da mais sinistra fábrica da morte. Enquanto o filme nos mostra crianças correndo no quintal verde, a esposa regando seu canteiro de flores, ou mostrando aos convidados o impressionante jardim que cultiva, também se ouvem sons surdos de sofrimento (tiros, gemidos, gritos) que ocorrem atrás daquelas paredes límpidas e claras. Não há nelas nenhum rabisco, mancha de mofo, ou sangue. Tudo é limpo e perfeito.

O horror está nos olhos de quem vê, amplificado pela música pulsante do compositor Mica Levi. Este é um filme que busca a irrepresentabilidade, ou seja, utiliza a linguagem cinematográfica para capturar o que parece impossível de apreender, impossível de transferir para a tela do cinema, da TV, ou mesmo para o pequeno espaço de exibição do telefone.
 
 A atriz alemã Sandra Hüller no papel de Hedwig Höss

O desejo evidente do diretor é retratar o holocausto em sons, a arrogância dos criminosos, a inconsciência e os motivos capitalistas por trás dos planos de extermínio.

A essência da "banalidade do mal", descrita por Hannah Arendt, é retratada nas sequências que enfocam o discurso sobre os negócios. Como na cena em que os nazistas estão discutindo os meios de melhorar o funcionamento do campo de extermínio para que o expurgo ocorra mais rapidamente e gere menos perdas econômicas para o Reich, ou naquela cena em que Höss ostenta o dinheiro que recebe por estar naquela zona de interesse.

Sem dúvida, este filme veio ocupar um lugar na atualidade, onde movimentos neonazistas, evangélicos pré-cristãos e sionistas dominam os discursos, as notícias e, em muitos casos, estão muito próximos de nós. Antigos amigos e familiares que, de uma hora para outra, se revelam como pessoas más, ignorantes e desconectadas do amor, onde só o ódio e a intolerância as movem.

Primo Levi escreveu: "Existem monstros, mas são poucos para serem perigosos. Os mais perigosos são as pessoas comuns que estão dispostas a agir sem fazer perguntas." 

SOBRE RUDOLF HÖSS

Ele nasceu em 1901 em Baden-Baden. Em 1929, casou-se com Hedwig Hensel, com quem teve 5 filhos.


Ele serviu, por quase dois anos, como comandante de Auschwitz. Ele foi um dos responsáveis por testar, e depois implementar, vários métodos de matança, entre eles a introdução do pesticida Zyklon B, para executar o plano de Adolf Hitler de extermínio.

Em 25 de maio de 1946, Höss foi entregue às autoridades polacas e para o Supremo Tribunal Nacional. Seu julgamento durou de 11 a 29 de março de 1947.


Em 2 de abril, foi sentenciado à morte por enforcamento. A sentença foi executada quando ele tinha 46 anos, no dia 16 de abril de 1947, na entrada do que fora o crematório 1 do campo de concentração e extermínio alemão nazista de Auschwitz I.


Texto: Ulisses Iarochinski