segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Cracóvia contra o cerco religioso-fascista

Grzegorz Ryś e a crise do catolicismo patriótico na Polônia

 

 Ao nomear Grzegorz Ryś cardeal-arcebispo de Cracóvia, o Vaticano abriu uma fissura no coração simbólico do catolicismo polaco. O conflito não é teológico, mas identitário: trata-se de decidir se a Igreja continuará sendo trincheira da nação ou se ousará existir sem inimigos permanentes.

Cracóvia não é apenas Cracóvia 

Na Polônia, poucas cidades concentram tanto poder simbólico quanto Cracóvia. Antiga capital real, centro intelectual e espiritual, a cidade de Karol Wojtyła é mais do que uma diocese: é o eixo moral da nação. Governar Cracóvia significa disputar a interpretação legítima da história polaca — e, por extensão, do próprio catolicismo nacional.

Foi por isso que a nomeação de Grzegorz Ryś como cardeal-arcebispo, em dezembro de 2025, provocou uma reação desproporcional ao evento em si. Não houve escândalo pessoal, heresia doutrinária ou ruptura canônica. Ainda assim, setores inteiros da Igreja e da extrema-direita política reagiram como se uma fortaleza tivesse sido tomada.

Ao fazer de Ryś um Cardeal e colocá-lo em Cracóvia, o Papa Francisco garantiu que a Polônia tenha uma voz progressista (ou ao menos moderada) no próximo Conclave.

Em um eventual Conclave em 2025 ou 2026, Ryś surge não apenas como um eleitor, mas como um papabile (candidato ao papado) para aqueles que desejam um "Papa do Leste" que entenda a democracia moderna e o diálogo com o Ocidente.

Com a posse de Ryś, a arquidiocese de Cracóvia deixa de ser o quartel-general do conservadorismo polaco para se tornar o laboratório de uma Igreja que busca recuperar a relevância entre os jovens, que se afastaram em massa durante a gestão anterior devido ao excesso de politização.

Ryś não chegou como revolucionário. Chegou como algo mais perigoso: um reformista silencioso.

Para os moderados e jovens, Ryś é um sopro de esperança para "trazer os fiéis de volta" através da empatia e do diálogo. Para os conservadores, ele é visto como uma ameaça à identidade católica tradicional da Polônia, acusado de "protestantizar" a Igreja ou ser "excessivamente diplomático" com o mundo moderno.

Ryś tem um perfil de "mãos limpas" e austeridade. Ao assumir uma das arquidioceses mais ricas e influentes do mundo católico, ele iniciou um processo de revisão de contas e propriedades. Isso gera pânico em setores que se beneficiaram de décadas de isenções e parcerias com governos conservadores passados. A polêmica aqui é menos teológica e mais pragmática e econômica.

Grzegorz Ryś é conhecido por:

Participar do "Przystanek Woodstock" (um dos maiores festivais de rock/alternativos da Europa) para falar com jovens que abandonaram a Igreja. Usar redes sociais de forma direta, sem a pompa tradicional do clero polaco.

A Polêmica: Para o clero mais velho, isso é visto como "diluição da fé" ou busca por popularidade barata. Para Ryś, é a única forma de salvar a Igreja em um país que está se secularizando mais rápido do que quase qualquer outro no mundo.

O fim da era Jędraszewski


 
Durante mais de uma década, Cracóvia esteve sob o comando de Marek Jędraszewski, figura central do episcopado nacionalista. Próximo do partido Direito e Justiça (PiS) e aliado estratégico do padre Tadeusz Rydzyk, Jędraszewski transformou a arquidiocese em bastião da guerra cultural.
 
Discursos contra minorias, ataques à União Europeia, resistência frontal às reformas do Papa Francisco e alinhamento explícito com campanhas eleitorais marcaram sua gestão.
 
Além de desrespeito total às regras sanitárias durante a epidemia da Covid-19. Jędraszewski defendeu abertamente a continuidade de grandes celebrações e peregrinações.
 
Em agosto de 2020, por exemplo, ele celebrou a Missa da Transfiguração e liderou pessoalmente um trecho da peregrinação anual de Cracóvia a Częstochowa, sem o uso de máscaras, argumentando que a "fome espiritual" não podia ser negligenciada, apesar dos riscos de contágio.
 
Para críticos e autoridades de saúde, essa postura incentivava aglomerações e desafiava as normas de segurança, sendo vista como uma priorização da tradição ritualística sobre a saúde pública. A Igreja não apenas comentava a política: participava dela como ator militante. 
 
Papa Francisco jamais o fez cardeal. E todos se perguntavam por quê? Seu sucessor, Papa Leão XIV, confirmou a exclusão. A mensagem vinda de Roma foi clara: aquela Igreja beligerante não representava o catolicismo universal.
 
Ryś entra em cena como antítese. Onde havia retórica de combate, ele propõe linguagem pastoral. Onde havia alinhamento automático com o poder, ele insiste na autonomia da fé.

Diferenças entre o arcebispo Jędraszewski e o Cardeal Ryś 

Aspecto

Marek Jędraszewski (Antecessor)

Grzegorz Ryś (Atual)

Perfil Político

Fortemente alinhado

à direita nacionalista (PiS).

Defende a independência total

da Igreja frente aos partidos.

Base Midiática

Apoiado pela Rádio Maryja e TV Trwam.

Focado em novos meios e

diálogo com a mídia secular.

Temas Centrais

Combate a "ideologias modernas"

(LGBT, Ecologismo).

Transparência em abusos

e diálogo com jovens e ateus.

Estilo Litúrgico

Tradicionalista, focado em grandes

procissões e massas.

Intelectual, focado na

"Nova Evangelização" e

simplicidade.

Relação Papal

Resistência às reformas de

Francisco/Leão XIV.

Nomeado diretamente para

aplicar a agenda de Leão XIV.

Antemurale Christianitatis: a Polônia como destino armado

Para entender a violência simbólica dessa transição, é preciso recuar no tempo. A identidade polaca foi forjada na ideia de Antemurale Christianitatis — o Baluarte da Cristandade. A vitória de Jan III Sobieski sobre os muçulmanos turcos-otomanos, em Viena, em 1683, consolidou o mito fundador: a Polônia como escudo da Europa cristã. A Polônia salvou a Europa da invasão do Islamismo.
 
Esse imaginário atravessou séculos. Mudaram os inimigos, não a lógica. Otomanos deram lugar a russos, depois a alemães, ao comunismo soviético e, finalmente, ao “secularismo de Bruxelas”, à imigração e ao liberalismo cultural.
 
A Igreja tornou-se quartel-general dessa narrativa. Não apenas guardiã da fé, mas sentinela da civilização.
 
O problema desse modelo é simples: uma fortaleza precisa de inimigos para justificar sua existência.
 
Sobieski reciclado
 

Na Polônia contemporânea, o marechal-rei Sobieski não é tratado como personagem histórico, mas como arquétipo político. A Rádio Maryja do Padre fascista Tadeusz Rydzyk e seus satélites midiáticos transformaram o rei em símbolo eterno da defesa armada da identidade polaca.
 
Sobieski nunca aparece como diplomata, estadista ou homem de seu tempo. Surge apenas como guerreiro — modelo a ser imitado contra os “novos invasores”
 
Quando Ryś fala de acolhimento, caridade e diálogo, a resposta vem pronta: “E Viena?”. Como se o cristianismo polaco estivesse condenado a repetir eternamente 1683.
 
Ryś não nega Jan III Sobieski. Ele faz algo mais radical: retira Sobieski do presente político. Ao fazê-lo, desmonta a lógica de cerco permanente que sustenta o catolicismo patriótico.
 
Rydzyk e a construção do catolicismo eleitoral
 
Nenhuma figura encarna essa fusão entre fé, medo e poder como o padre Tadeusz Rydzyk. Seu império — Rádio Maryja, TV Trwam, universidades, fundações — não apenas evangelizou. Ele ensinou como votar.
 
Desde os anos 1990, Rydzyk fez de uma rádio clandestina, uma rede radiofônica que construiu uma base eleitoral disciplinada, sobretudo entre idosos e populações rurais. A mensagem era simples e eficaz: a Polônia está sob ataque, e apenas a extrema-direita nacionalista pode salvá-la. Em muito lembrando o nazismo de Adolf Hitler.
 
O PiS tornou-se o braço político dessa teologia do cerco. Em troca de apoio eleitoral, garantiu financiamento, privilégios e acesso ao Estado. A simbiose foi total.
 
2003: quando a Polônia quase disse não à Europa
 
 
O auge desse poder ocorreu no plebiscito de 2003 sobre a entrada da Polônia na União Europeia. A Rádio Maryja liderou uma campanha feroz contra a adesão, retratando Bruxelas como nova potência ocupante, hostil à fé e à soberania polaca.
 
O “não” era apresentado como ato de fidelidade religiosa. O “sim”, como traição nacional.
 
A Polônia esteve perigosamente perto de rejeitar a UE.
 
Dois atores impediram o isolamento histórico. O primeiro foi o Papa João Paulo II, que declarou de forma inequívoca que a adesão era compatível com o catolicismo e com a vocação europeia da Polônia. O segundo foi o jornal Gazeta Wyborcza, que enfrentou a Rádio Maryja no campo da opinião pública como nenhuma outra instituição secular ousou.
 
Naquela virada de sábado para domingo de votações no plebiscito, o cidadão polaco investido de Papa da maior igreja do Ocidente ordenou ao Padre Rydzyk e a todos os padres da rede de Rádio Maryja que em suas emissões e nas homilias das missas daquele domingo todos depois do culto todos os fiéis deveriam se dirigir aos postos eleitorais e votar Sim pela entrada na União Europeia. Isto, porque, o sábado tinha sido catastrófico, além do pouco comparecimento, o não estava vencendo.
 
Já o jornal saiu às bancas, ruas, meios de transporte ainda na virada da noite para a madrugada com edição extraordinária convocando o povo a votar Sim.
 
A vitória do “sim” foi apertada. O comparecimento ultrapassou os 50 por cento necessários para a aprovação. Para Rydzyk e seus aliados, ficou a convicção de que o Papa e a “elite liberal” haviam imposto sua vontade contra o “verdadeiro povo”.
 
Resultado do plebiscito
SIM - 13.514.872 / 77,45%
NÃO - 3.935.655 / 22,55%
 
Votos válidos - 17.450.527 / 99,28%
Votos inválidos ou brancos - 126.187 / 0,72%
Eleitores registrados - 29.864.969 / 58,85% 
 
Essa ferida nunca cicatrizou.
 
Ryś e a desativação do púlpito político
 
É nesse campo minado que Ryś assume Cracóvia. Sua primeira decisão simbólica foi clara: o púlpito não é palanque. Homilias eleitorais foram proibidas. Auditorias financeiras iniciadas. Comissões independentes para investigar abusos sexuais anunciadas.
 
Nada disso altera a doutrina. Tudo isso altera o poder.
 
Ryś não é liberal teológico. Mantém posições tradicionais sobre aborto, sacerdócio e família. O que ele recusa é transformar esses temas em armas eleitorais.
 
Para a direita religiosa, isso é devastador. Uma fé sem mobilização política perde utilidade estratégica.
 
Migração, medo e linguagem cristã
 
O conflito se intensificou quando Ryś criticou discursos anti-imigração feitos em Jasna Góra. Para a ala nacionalista, acolher o estrangeiro é esquecer Sobieski. Para Ryś, usar Sobieski para justificar o medo é trair o cristianismo.
 
Não se trata de política migratória. Trata-se de linguagem moral. Ryś pede conversão do vocabulário. A direita responde com acusação de fraqueza.
 
João Paulo II: herói nacional ou legado universal?
 

Aqui está o nervo exposto. Para muitos polacos, João Paulo II não é apenas santo — é o herói libertador da pátria. Sua imagem foi capturada como ícone do nacionalismo religioso.
 
Ryś, ironicamente um dos maiores especialistas em Wojtyła, propõe outra leitura. Resgata o papa do ecumenismo, dos direitos humanos, da Europa plural. Não nega o anticomunismo, mas recusa reduzi-lo a isso.
 
Ao fazê-lo, ele rompe o monopólio simbólico da direita sobre o Papa Polaco.
 
A fratura geracional
 
A juventude polaca, seculariza-se rapidamente, mas mantém rituais. Sai nas baladas de sábado à noite e só volta para casa lá pelas 4 horas da manhã. Em sua maioria, bêbada de cerveja e vodca. Mas, religiosamente se levanta para ir à “missa das 10 horas”, menos por fé profunda e mais por herança cultural. Ryś aposta nesse espaço ambíguo.
 
Ele sabe que, se a Igreja continuar sendo museu da Guerra Fria, morrerá com seus veteranos.
 
O risco é alto: desagradar os mais velhos sem conquistar plenamente os jovens.
 
Depois de Tadeusz Rydzyk
 

Mesmo quando Rydzyk sair de cena, o fenômeno persistirá. Há dinheiro, mídia, formação ideológica e estética de combate — dos “Guerreiros de Maria” às novas plataformas digitais. 
 
O próximo líder será, possivelmente, mais jovem e mais radical. A convicção de ser “mais católico que Roma” já está instalada.
 
Ryś não enfrenta um homem. Enfrenta uma cultura secular.
 
 
Fortaleza ou farol
 
Cúria Metropolitana de Cracóvia
com a foto de São João Paulo II, na janela acima do portão principal


O que está em jogo em Cracóvia não é a fé católica. É sua função política. Durante séculos, o catolicismo polaco foi trincheira. Ryś propõe que volte a ser farol.
 
Sobieski continuará na história. João Paulo II continuará nos altares. A missa das 10 horas continuará cheia. Mas o sentido dessa missa — cerco ou abertura, guerra ou evangelização, medo ou liberdade — está sendo decidido agora.
 
E é por isso que Grzegorz Ryś assusta tanto.
 
Quem é Ryś 
 
Grzegorz Wojciech Ryś é um cardeal polaco da Igreja Católica, desde 2025 é o arcebispo da Arquidiocese de Cracóvia.
 
Nascimento: 9 de fevereiro de 1964 (idade 61 anos), Cracóvia, Polônia
Pais: Maria Ryś Irmãos: Janusz Ryś
Livros: Rekolekcje, Duch Święty, Inkwizycja.
Formação: Uniwersytet Papieski Jana Pawła II. Wydział Historii i Dziedzictwa Kulturowego (2000).
Nomeado arcebispo: 14 de setembro de 2017.
 
 
Estudos Iniciais: Frequentou a Pontifícia Academia de Teologia de Cracóvia (atual Universidade Pontifícia João Paulo II), onde estudou Teologia e História da Igreja.
Doutorado e Pós-Doutorado: Obteve doutorado em Teologia e, posteriormente, um pós-doutorado (habilitação) em História, especializando-se em história medieval.
Carreira Acadêmica: Além dos estudos, Grzegorz Ryś teve uma longa carreira como professor na mesma instituição onde se formou. Ele é conhecido por ser um historiador, ecumenista e evangelizador, com um estilo de comunicação acessível e profundo 
 
 
Texto: Ulisses iarochinski