Muito nela tem a ver com a herança católica tradicional transferida pela mãe, dona Janina, 90, que vive na outra metade da ampla casa da Rua Brigadeiro Franco, em Curitiba, e com o legado espiritual do pai, Estanislau, já morto, polaco que aqui chegou aos 12 anos.
O fumo talvez seja a única contradição na vida de quem há pelo menos 15 anos é paladino das causas ecológicas. Mas que, ao mesmo tempo, é identificada por outros traços notáveis: as lutas e conseqüentes prisões políticas sofridas por ter defendido o homem oprimido; o apego à cultura paranaense-polaca; e sua insubstituível presença no jornalismo do Estado, como repórter e comandante de redações.
Logo nas primeiras locuções bem pronunciadas, o interlocutor recém introduzido a Teresa Urban descobrirá que está diante de um ser precioso. E que gostar dela ou de suas teses, ou apoiá-las, não é o importante. O valioso é ouvi-la e recolher as lições de vidas de um ser inflexível no combate daquilo que aponta como injustiças (contra o homem, os bichos, as florestas, a biosfera, as minorias...).
No telefone, alguém da sua casa, “uma amiga”, informa que Teresa Urban está viajando, ficará 10 dias fora, “à procura de florestas”. É uma caçadora de florestas. Florestas que hoje são preciosidades, em extinção, no Sul. Mas antes de caçar florestas, e de se embrenhar em lutas também sem fim pela preservação de mananciais, como os que abastecem Curitiba, e daquilo que restou de floresta de araucária (0,8% do acervo identificado no começo do século 20), essa mulher que sempre gera polêmicas — “você não fica indiferente às teses dela, ela terá sempre posições muito definidas”, diz uma professora da UFPR, da área biológica — teve uma conturbada ação política.
Tereza Urban, ainda no Colégio São José, em Curitiba.
Madura intelectualmente, dava trabalho a mestres acomodados ou não, no curso de jornalismo da UFPR, de 1965 a 1967. Nunca renunciou a questionar o mundo ao derredor e as verdades históricas encobertas ou os tempos nebulosos de uma universidade de joelhos diante de pressões dos arapongas e de setores castrenses.
Quem a conhece sabe que ameaças e perigos sempre a fizeram mais forte. Foi assim desde o começo da militância esquerdista. Primeiro, em movimentos católicos, como a Ação Católica (JUC); depois, os desdobramentos à esquerda da Igreja, que então era um dos poucos núcleos de resistência ao governo ditatorial. Expressões da Igreja Católica visíveis em organismos como a AP (Ação Popular) — com o qual a hierarquia não se ligou senão por meio de militantes. Nos meios católicos, cita sempre dois contemporâneos de juventude e ideais: Paulo Bottas e Paulo Esmanhotto. Tornou-se agnóstica (ou já não era mais crente nos dogmas do Transcendental?), optou pelo comunismo mas não se filiou ao partidão e teve uma rápida ligação com o grupo dissidente que deu origem ao MR-8. Também atuou junto à POLOP (Política Operária). Era crente disciplinada, a da genuflexão quase completa aos dogmas marxistas aceitos a partir de 1966.
Mas divergiu das esquerdas que pregavam a resistência armada, posição por ela marcada várias vezes. Escolheu o caminho da pedagogia política. Correu o Paraná, tentando “organizar a classe operária”. Resultados parcos. Depois, foi fazer catequese marxista entre os bóias-frias do Norte do Paraná. “Numa semana eles ouviam a gente, na seguinte, já não se encontravam as mesmas pessoas”. Mobilidade física do lúmpen rural acompanhada por um certo desinteresse em organizar-se para enfrentar questões como as de injustiça no dia-a-dia do campo. Não gosta de responder sobre os seus torturadores de 1970. Cita apenas dois: um sargento de sobrenome italiano, morador das Minas Gerais, que tem família em Curitiba, e que em sonhos recorrentes lhe aparece para “apertar a moleira do Gunther”, o filho que era bebê nos dias da prisão; e o delegado paulista Sérgio Fleury, o carrasco da repressão política. Sofreu muito, torturas psicológicas e físicas, inimagináveis, ali na Praça Rui Barbosa, onde então funcionava um quartel militar (hoje, Rua da Cidadania). Era a central curitibana da repressão política. Em busca de liberdade, foi para o Chile, onde viveu sob ares democráticos, de 1970 a 1972. O filho ficou sob os cuidados da mãe, dona Janina, uma mulher de oração e ação, criadora e até agora mantenedora do Abrigo do Senhor (com ajuda de amigos), que acolhe, dando casas e comida, uma dúzia de famílias carentes, em Campo Magro.
— Claro que nunca foi fácil para minha mãe, uma mulher criada no catolicismo tridentino, entender uma opção marxista, comunista, como a minha. Mas ela nunca fugiu dos seus deveres de mãe, de dar apoio, ajuda e consolo, garante Teresa. Uma vez, levados por paranóia sem medidas, cassadores (de cassar direitos) prenderam a outra Urban, dona Janina, por engano. Teresa apressou-se em substituí-la nas grades, enquadrada por práticas de “subversão à ordem constituída”. Esperançosa de tempos melhores, a catequista da luta operária e camponesa volta ao Brasil em 1972. É logo presa, e condenada pela Lei de Segurança Nacional, por “subversão”.
Em 1975, começa a colaborar com a revista Panorama , como repórter. Depois, de 1977 a 1978, era o semanário Voz do Paraná. Depois, uma longa passagem pela revista Veja , em Curitiba, e a seguir a chefia de redação da sucursal de O Estado de S. Paulo . Em 2000 retoma o jornalismo, até final de 2001, dirigindo o diário Folha de Londrina.
Assim, no começo dos anos 90 embrenha-se nas lutas ecológicas, participando de instituições como Sociedade de Pesquisa da Vida Selvagem (SPVS), SOS Mata Atlântica, Rede Verde de Informações Ambientais, e em projetos de educação ambiental. Em parceria com a ONG Mater Natura, Teresa ajudou a viabilizar o projeto Pró-Lago, de educação da população vizinha à represa do Irai e dos mananciais formadores do Iguaçu, Leste de Curitiba, na Região Metropolitana.
De lá para cá, já participou do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAM), fez auditoria ambiental no Prosan, projeto do Banco Mundial de conservação ambiental (saneamento) levado como modelar, exibido no Habitat II, em Istambul, em 1996. O trabalho rendeu a Teresa visibilidade para ganhar novos apoios de entidades internacionais às causas que defende do meio ambiente.
A Fundação Francisco, de Brasília, a Fundação Ashoka, dos Estados Unidos, e o Fundo Nacional do Meio Ambiente apoiaram-na na grande empreitada pioneira em termos mundiais que foi a Rede Verde de Comunicação Ambiental. Esse trabalho recorria a uma espécie de cobaia da internet, a Alternex, abastecendo centenas de jornais, rádios e televisões do Brasil e exterior com informações ecológicas e de catequese ambientalista.
Qual profeta veterotestamentária, Teresa tem clamado contra a degradação ambiental, o comprometimento dos rios, a extinção da Mata Atlântica e das florestas de araucárias, o sumiço da fauna. Fala do mundo mais imediato, o do Sul. Acha que, mal ou bem, graças até ao olhar e pressões internacionais permanentes, a Amazônia — o dito pulmão do mundo — está bem monitorada.
— Temo e tremo pelo que vem aí. Quando faltar água de verdade nas metrópoles, talvez essa catástrofe provoque nas autoridades e no homem em geral interesse para preservar o que levou bilhões de anos para ser formado e estamos destruindo em duas gerações. As grandes mudanças virão, infelizmente, quando o caos estiver instalado e estivermos buscando água a sabe-se lá quantas centenas de quilômetros de Curitiba..., ressalta a ambientalista.
Pelas contas de Teresa, até os anos 70 do século passado, o Paraná derrubou 94% de suas florestas e a implantação de indústrias automobilísticas na Região de Curitiba, com as indústrias subsidiárias, foi um desastre ecológico ainda maior, comprometendo os mananciais: não mais se respeitam as nascentes que formam o Iguaçu (os rios Irai, o Piraquara, o Pequeno, o Miringuava). A chegada da Renault rendeu não poucos dissabores à ecologista e seus aliados, cujos argumentos ecológicos e fincados no futuro mais ou menos imediato perderam para o imediatismo defendido: era preciso gerar empregos a qualquer custo. “O resultado agora é que o licenciamento ambiental no Paraná está desmoralizado”, garante.
Além da prática, Teresa levou sua militância para o papel. No livro Saudade do Matão , publicado pela Editora UFPR em 1999, Teresa faz um amplo levantamento da história da defesa do meio ambiente no Brasil, com depoimentos de seis de seus personagens mais notáveis: Adelmar Faria Coimbra Filho, Alceo Magnanini, almirante Ibsen de Gusmão Câmara, Maria Tereza Jorge Pádua, Paulo Nogueira Neto e Wanderbilt Duarte de Barros. Uma preciosidade realizada com o patrocínio da The John D. and Catherine T. McArthur Foundation e Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.
A face mais rica de Teresa talvez seja a que a aponta envolvida com suas raízes. A “etnógrafa” amadora (ela só quer ser jornalista, não tem outra pretensão) descreve com o melhor conhecimento de causa a vida dos polacos e seus descendentes no Sul do Brasil. Está no livro Tu i Tam — lá e cá.
Nesse meio tempo, as lentes de João Urban foram à Polônia, em 1992. Acompanhado da mãe, dona Janina, João capturou momentos de semelhanças e dissonâncias entre os trabalhos agrícolas polacos e os de seus parentes aqui. Razão do nome lá e cá, Tu i Tam . As casas ricas em cores, por exemplo, são um gosto comum, diz Teresa. O livro é ferramenta para que se entenda um pouco mais também a jornalista Teresa. Na obra, ela envereda por um universo de trabalho muito peculiar, rico em situações atuais, em colônias como a de Santana, em Cruz Machado, próximo a União da Vitória. “Lá, 30% das crianças ainda falam polaco” — constata Teresa, sem esconder um certo orgulho no examinar essa realidade cultural única. A paisagem é de florestas convivendo com a agricultura familiar. O livro vai também às colônias Muricy e Tomás Coelho (desta, restam poucos vestígios polacos). Santana é só alegrias para a pesquisadora Teresa que, ao contrário de João Urban, não fala, mas pode entender a língua dos pais. “É uma réplica das primeiras colônias no Paraná e está no roteiro definitivo da história polaca no Brasil, iniciada no século 19”.
Entusiasmo contido: Teresa lembra a saga da família de Estanislau, o pai, chegada ao Brasil no final do século 19, indo direto — ele, os pais e cinco irmãos — para as lavouras de café em São Paulo. Mas eram urbanos, trataram de “fugir” para Curitiba, onde Estanislau depois casaria com a filha de polacos Janina Majchrowicz, uma mulher que fala e escreve a língua polaca. Janina é parte de um grupo de dez pessoas que até hoje resiste, aos domingos de manhã, mantendo a celebração da missa em polaco, na Igreja de São Vicente de Paulo, em Curitiba.
Estanislau foi das grandes admirações de Teresa, marceneiro exímio, produtor de móveis requintados muitos dos quais hoje resgatados pela família. O mesmo Estanislau que, um dia, confessaria a Teresa também ter militado no Partido Comunista, “na juventude” — militância abandonada pouco tempo depois, quando retornaria ao catolicismo.
Sente-se como que em estado de graça pelas batalhas campais encetadas. Não importa se algumas foram perdidas. O importante, o que conta, para ela, é que cada vez mais gente de seu calibre e com suas opiniões está tentando salvar o Paraíso. Ninguém merece o Leste do Éden, parece dizer ao despedir-se anunciando: “Na semana que vem estarei fora, procurando florestas”.
PRINCIPAIS OBRAS
- Boias Frias - Tagelohner im Sudem Brasiliens . Edition diá: Alemanha, 1984.
- Bóias Frias - Vista Parcial . Editon diá e Fundação Cultural de Curitiba: Brasil, 1988.
- O livro do Matte . Salamandra Consultoria Editorial: Rio de Janeiro, 1990.
- Engenhos e Barbaquás , com Nego Miranda. Editora do autor: Curitiba, 1998.
- Saudade do Matão . Editora UFPR: Curitiba, 1999.
- Missão (Quase) Impossível . Editora Peirópolis: São Paulo, 2001.
- Em Outras Palavras - Meio Ambiente para Jornalistas . Senar-Pr/SEMA: Curitiba, 2002.
- Memórias de Um Paraíso em Floresta Atlântica: Reserva da Biosfera, com Carlos Renato Fernandes. Curitiba, 2003.
- Histórias do Velho Victor . Editora do autor: Curitiba, 2004.