Colina de Wawel - Catedral e Castelo de Cracóvia |
Uma viagem a Varsóvia e Cracóvia
em companhia de Chopin e Copérnico
por Jerusa Pires Ferreira
Chegar à Polônia é cumprir um antigo desejo. É a evocação de mitos que freqüentam nossa imaginação infantil. É ouvir de novo a voz de meu pai, diante de uma interpretação que eu fazia de Chopin, a dizer-me que seria preciso fazer a mão esquerda cantar com alma, pois era a Polônia que estava sofrendo.
Um dos difusores da evocação terá sido o filme "À Noite Sonhamos", em que a dimensão heróica da resistência à ocupação russa se apresenta com o orgulho romântico de quem se recusa a tocar para os "carniceiros do czar".
Agora, mais de meio século depois, recebe-me em Varsóvia Józef Kwaterko, o companheiro que me conduzirá pelas Polônias possíveis, inclusive a judaica e a cristã.
Saímos para jantar. Entramos no restaurante Tradycja, a tradição das toalhas bordadas, da luz de velas acesas, da louça com frisos delicados e tons de suaves flores. E as sopas, os "pierogi", e tudo o que pode trazer ao paladar o requinte de uma tradição tão bem conservada. A variedade de sopas, do "borsch" às sopas de cogumelos. Pode-se ver na tradição culinária, na maneira de apresentar e servir uma refeição, a marca de uma permanência cultural.
Evocava também as artes visuais, as artes gráficas que um dia, muito jovem, pude contemplar numa exposição do Instituto Goethe na Bahia, e que tão forte presença tinha garantido em mim. A imagem daqueles cartazes estava ali, não sem a emoção do encontro que aproximava dois tempos de minha vida, ali mesmo no Museu dos Plakats.
Viria depois o passeio a pé pela velha-nova Varsóvia, reconstrução mais absoluta que já se fez numa cidade, as muralhas, as torres, os passeios públicos. Poderíamos até pensar numa cidade-maquete, se não fosse um húmus de obstinação. A cidade pulsa, os desempregados vendem coisas, as lojas oferecem muitas compras e o bonde corta de tempos em tempos as linhas reais e imaginárias. Esse caminho nos levou ao Café Blicke, o mais tradicional, com uma história que remonta a 1889, totalmente destruído pela guerra e recuperado com grande estilo. Pães e bolos nos convidando a uma festa.
De descoberta em descoberta, junto à policromia das casas, a estátua de Adam Mickiewicz, grande poeta do século 19, parece cumprir seu papel tutelar, o de todos os grandes poetas. O de estar velando pela presença de verdades em registro de fantasia. Assim chegamos ao Museu das Literaturas na praça da Cidade Velha, e, entre restaurantes e lojas de venda de âmbar, a descoberta de um pouso tentador: o Pod Sansom, restaurante judaico em que às iguarias se reúne o prazer de estar ao ar livre em grandes bancos de madeira.
De Cracóvia eu sabia que era bela.
Que passava pelo mesmo rio que acompanhei em Varsóvia, o Vistula, que ali ganha ganha novas cores e navegações.
Dois dias depois, a partida para Cracóvia, estação em festa pelo retorno da rapaziada que vinha de servir à tropa, e que enchia a estação com risos e burburinho. Por contraste à vida e à alegria, o silêncio tomou conta da cabine do trem, a mudez de caras soturnas, carregadas de suas histórias.
No dia seguinte, uma vigorosa e alegre manhã que incluiu uma caminhada pela cidade, suas igrejas, a bela igreja de Santana, de nome igual à matriz de minha terra sertaneja. Pude descobrir a luz que delineava os edifícios da praça Maior, em que se encontram a igreja de Santa Maria, com suas torres gêmeas e o Mercado.
De Cracóvia eu sabia que era bela. Que passava pelo mesmo rio que acompanhei em Varsóvia, o Vistula, que ali ganha novas cores e navegações. Sabia-a um berço do catolicismo tradicional e do conservadorismo mais estreito. Queria, e ao mesmo tempo não queria, identificar frases, sinais, posturas, situar o catolicismo nas pompas do papa, reconhecer os emblemas de uma universidade apoiada numa tradição conservadora muito forte. Mas pude também aprender que a universidade significou o centro vital dessa Polônia, em sua unidade e resistência a tantos invasores.
No Colégio da Universidade Jagielônica há um retrato de Nicolau Copérnico (1473-1543) na Galeria dos Heróis. Copérnico desenvolveu a teoria do movimento da Terra em torno do Sol, condenada pela Igreja. O quadro é uma cópia. O original está no Museu de Torun, porto fluvial do Vistula, onde ele nasceu. Ainda assim, impressiona, e foi sob seu olhar vigilante que aprendi, com seus dogmas e heresias, que não podemos julgar fatos culturais e sociais a partir de padrões que servem para nossa história, nossa vivência social, para a pressa de percepção que temos de nós mesmos e dos outros.
Ulisses Iarochinski, autodenominado polaco paranaense, que ali vive e exerce o ofício de jornalista e pensador daquela cultura, observa que o comunismo ainda comparece em gestos e escolhas, hábitos persistentes sob novas formas. Sim, eu noto, ficaram nos territórios das conquistas do socialismo. Não há analfabetos na Polônia, as pessoas não costumam se mostrar serviçais -ao contrário, são altivas.
Não cessei de pensar no papel que os judeus representam como parte e contraparte dessa construção social. Aqui os judeus (em sua diversidade) seriam a renovação.
Visitamos o Gueto de Varsóvia e no silêncio do quarteirão, naquele parque agora luminoso seria impossível não imaginar a destruição, os lança-chamas dos nazistas, a morte. Lembramos a vida, a reação e a coragem heróica e também o medo que afinal toca a todos os homens e mulheres martirizados. O monumento, o memorial em que a falha, o espaço vazio no granito representam o sacrifício a dor, a interrupção nos caminhos desse povo.
Vamos ver a partida a Treblinka, hoje um lugar entre duas lápides suspensas em forma de semi-arco. Opostas, uma branca e uma negra. E no meio delas a grama, os olmos, os pássaros. Daquela partida para o extermínio me ficou uma dor maior, átomos do tormento, ecos difusos de todos os prantos, o que suscitou no entanto uma dimensão renovadora dessa recuperação.
Tudo isso é a Polônia, e é por isso que é preciso fazer a mão esquerda cantar com alma.
Texto: Jerusa Pires Ferreira é professora do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e coordenadora do Centro de Estudos da Oralidade do COS/PUC-SP.
Texto publicado originalmente no UOL, em São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007
SERVIÇO
Hotéis
InterContinental
Ul. Emili Plater 49, Varsóvia
Tel: (00/xx/48/22) 328 88 88
www.warsaw.intercontinental.com
Além do luxo, o hotel oferece um centro de lazer com vista para a cidade.
Diárias a partir de R$ 325, por casal (não inclui café da manhã).
Boutique Bed & Breakfast
Smolna
Smolna 14/7, Varsóvia
Tel: (00/xx/48/22) 829 48 01
www.bedandbreakfast.pl
Os apartamentos "Queen" e "King" têm cozinha completa e acesso à internet sem fio. Diárias a partir de R$ 191 por casal.
Copernicus
Kanonicza, 16, Cracóvia
Tel: (0/xx/48/12) 424 34 00
www.hotel.com.pl
Considerado um dos melhores endereços da cidade, o hotel tem um afresco de 1500 numa das paredes. Diárias a partir de R$ 544.
Restaurante
Polski Smak
Galczynskiego 3, Varsóvia
Tel: (0/xx/48/22) 826 59 67
A especialidade da casa é o pato assado servido com "cranberries" e maçã cozida.
Ale Gloria
Plac Trzech Krzyzy 3, Varsóvia
Tel: (0/xx/48/22) 584 70 80
www.alegloria.pl
Menu rico em saladas, pratos típicos e exóticos. O serviço é requintado.
Não deixe de ir
Museu histórico de Varsóvia
Rynek Starego Miasta 42
Tel: (0/xx/48/22) 635 16 25
Fascinante passeio pelos altos e baixos da capital ao longo dos séculos.
Castelo Real
Plac Zamkowy, 4, Varsóvia
Tel: (0/xx/48/22) 657 23 38
Destruído pelos nazistas durante a Segunda Guerra, o edifício foi reconstruído durante o regime comunista. Atualmente, tem o mesmo aspecto do original do século 18.
Museu Czartoryski
Sw. jana, 19, Cracóvia
Tel: (0/xx/48/12) 422-5566
www.muzeum-czartoryskich.krakow.pl
O quadro "Dama com Armilho", de Da Vinci, uma das obras mais importantes do acervo polaco, está no local.