A Polônia se levanta contra a ultradireita. A onda conservadora vira tiro pela culatra. Em resposta a tentativa de limitar o direito ao aborto, milhares vão às ruas. Mulheres exigem democracia e fim do governo fundamentalista.
Muita gente viu fotos das grandes manifestações que tomaram as ruas de cidades da Polônia nas últimas semanas. Talvez se perguntem como é possível que, durante uma pandemia, centenas de milhares de pessoas, principalmente mulheres jovens, tenham saído para se manifestar na maior mobilização social do país desde o movimento Solidariedade, na década de 1980.
O que levou as pessoas às ruas?
A razão mais imediata desta mobilização é uma sentença recente do Tribunal Constitucional, que se transformou num organismo político que, segundo muitos observadores, não é mais independente do Partido Direito e da Justiça (PiS), o partido de extrema-direita que ocupa o governo há dois mandatos.
A razão mais imediata desta mobilização é uma sentença recente do Tribunal Constitucional, que se transformou num organismo político que, segundo muitos observadores, não é mais independente do Partido Direito e da Justiça (PiS), o partido de extrema-direita que ocupa o governo há dois mandatos.
Resumindo: em 22 de outubro último, este tribunal, presidido por uma mulher, decidiu invalidar a constitucionalidade do acesso ao aborto por má formação no feto, limitando ainda mais a regida lei de aborto polaca. De fato, a Polônia tem uma longa história de restrições ao direito reprodutivo.
A interrupção da gravidez era legal e acessível durante o período do socialismo de Estado posterior a 1956, mas uma lei promulgada, em 1993, o limitou a apenas três casos: quando a gravidez for resultado de um crime (ou seja, de um estupro), quando a vida ou a saúde da mulher estiverem em risco e quando o feto apresentar anomalias graves. Enquanto estavam vigentes estas restrições, o número de procedimentos realizados era escasso: pouco mais de mil abortos anuais feitos pela via legal, em um país com uma população de 38 milhões de habitantes. Além disso, até outubro de 2020, 97% destes procedimentos foram realizados através do pressuposto que acaba de ser proibido.
A consequência disso é que a decisão do Tribunal supõe que, na prática, quase todas as interrupções de gravidez estão proibidas. Naturalmente, as mulheres seguirão fazendo aborto às margens do sistema. Quando, no começo da década de 1990, esse direito foi restringido, as mulheres passaram a buscar procedimentos clandestinos. Atualmente, existem redes de acompanhamento que oferecem às mulheres o financiamento e a informação necessárias para abortar de forma segura no exterior, ou fazê-lo elas mesmas em casa.
A ilegalidade quase total do aborto poderia ter sido prevista no clima político atual da Polônia. O governo não previa, no entanto, uma resposta tão multitudinária contra essa decisão. As últimas medidas tomadas pelo PiS e a resistência frente a elas devem ser analisadas no contexto da guerra corrente contra a “ideologia de gênero e LGBTI+”, que o governo polaco tem lutado nos últimos cinco anos (desde que o Partido Direito e Justiça ganhou pela primeira vez as eleições presidenciais).
Essas são algumas das suas últimas ações claramente contra a igualdade: o ministro da Justiça ameaçou, em julho de 2020, retirar-se de forma oficial do Convênio de Istambul (o instrumento do Conselho da Europa que trata de prevenção e luta contra a violência às mulheres e as violências domésticas) e Andrzej Duda, o presidente da Polônia, em sua campanha pela reeleição recente, afirmou em uma conhecida declaração que “LGBTI+ é uma ideologia, não é gente”. Além disso, as ações do governo têm se agravado com o tempo e, em agosto de 2020, a polícia atacou e prendeu ativistas LGBTI+ de Varsóvia.
Os protestos que estão acontecendo agora são uma resposta ao aumento da perseguição contra os direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+, que culminou com a sentença do Tribunal Constitucional, mas são também fruto de mobilizações anteriores da esquerda. Em 2016, a tentativa do Parlamento de restringir o acesso ao aborto legal foi detido por manifestações em massa (conhecidas como o “protesto negro”) e greves de mulheres. E na primavera de 2020, durante o confinamento, uma tentativa parecida foi contra-atacada por bloqueios do trânsito nas maiores cidades, protestos nas sacadas de prédios, reuniões espontâneas e passeios coletivos em espaços públicos.
A partir de uma perspectiva mais ampla, esses protestos são igualmente consequência, direta e indireta, de todas as mobilizações sociais ocorridas, desde os anos 1990 e início dos anos 2000, pelos direitos das mulheres e LGBTI+, e das recentes greves globais pelo clima. No contexto polaco, além de tudo, podem ser entendidas em linhas gerais como um indicador do fim do domínio cultural e político da Igreja Católica Apostólica Romana e de sua contínua ingerência na esfera pública e no sistema educativo (a religião foi introduzida nos colégios públicos em 1990). Um exemplo disso é que, hoje, a lei do aborto de 1993 é entendida pela população em geral como um “pacto”, feito pelas costas das mulheres, entre os líderes políticos homens e os membros da Igreja católica.
A questão do aborto na Polônia está muito politizada nos últimos 30 anos — e, especialmente, nos últimos cinco. O governo, ao dar sinal verde para uma nova restrição na lei, brincou com fogo. Foi contra a maioria que forma a opinião pública polaca, que se opõe a novas proibições e prefere que os supostos casos de aborto de legal se ampliem, em vez de serem reduzidos.
A interrupção da gravidez era legal e acessível durante o período do socialismo de Estado posterior a 1956, mas uma lei promulgada, em 1993, o limitou a apenas três casos: quando a gravidez for resultado de um crime (ou seja, de um estupro), quando a vida ou a saúde da mulher estiverem em risco e quando o feto apresentar anomalias graves. Enquanto estavam vigentes estas restrições, o número de procedimentos realizados era escasso: pouco mais de mil abortos anuais feitos pela via legal, em um país com uma população de 38 milhões de habitantes. Além disso, até outubro de 2020, 97% destes procedimentos foram realizados através do pressuposto que acaba de ser proibido.
A consequência disso é que a decisão do Tribunal supõe que, na prática, quase todas as interrupções de gravidez estão proibidas. Naturalmente, as mulheres seguirão fazendo aborto às margens do sistema. Quando, no começo da década de 1990, esse direito foi restringido, as mulheres passaram a buscar procedimentos clandestinos. Atualmente, existem redes de acompanhamento que oferecem às mulheres o financiamento e a informação necessárias para abortar de forma segura no exterior, ou fazê-lo elas mesmas em casa.
A ilegalidade quase total do aborto poderia ter sido prevista no clima político atual da Polônia. O governo não previa, no entanto, uma resposta tão multitudinária contra essa decisão. As últimas medidas tomadas pelo PiS e a resistência frente a elas devem ser analisadas no contexto da guerra corrente contra a “ideologia de gênero e LGBTI+”, que o governo polaco tem lutado nos últimos cinco anos (desde que o Partido Direito e Justiça ganhou pela primeira vez as eleições presidenciais).
Essas são algumas das suas últimas ações claramente contra a igualdade: o ministro da Justiça ameaçou, em julho de 2020, retirar-se de forma oficial do Convênio de Istambul (o instrumento do Conselho da Europa que trata de prevenção e luta contra a violência às mulheres e as violências domésticas) e Andrzej Duda, o presidente da Polônia, em sua campanha pela reeleição recente, afirmou em uma conhecida declaração que “LGBTI+ é uma ideologia, não é gente”. Além disso, as ações do governo têm se agravado com o tempo e, em agosto de 2020, a polícia atacou e prendeu ativistas LGBTI+ de Varsóvia.
Os protestos que estão acontecendo agora são uma resposta ao aumento da perseguição contra os direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+, que culminou com a sentença do Tribunal Constitucional, mas são também fruto de mobilizações anteriores da esquerda. Em 2016, a tentativa do Parlamento de restringir o acesso ao aborto legal foi detido por manifestações em massa (conhecidas como o “protesto negro”) e greves de mulheres. E na primavera de 2020, durante o confinamento, uma tentativa parecida foi contra-atacada por bloqueios do trânsito nas maiores cidades, protestos nas sacadas de prédios, reuniões espontâneas e passeios coletivos em espaços públicos.
A partir de uma perspectiva mais ampla, esses protestos são igualmente consequência, direta e indireta, de todas as mobilizações sociais ocorridas, desde os anos 1990 e início dos anos 2000, pelos direitos das mulheres e LGBTI+, e das recentes greves globais pelo clima. No contexto polaco, além de tudo, podem ser entendidas em linhas gerais como um indicador do fim do domínio cultural e político da Igreja Católica Apostólica Romana e de sua contínua ingerência na esfera pública e no sistema educativo (a religião foi introduzida nos colégios públicos em 1990). Um exemplo disso é que, hoje, a lei do aborto de 1993 é entendida pela população em geral como um “pacto”, feito pelas costas das mulheres, entre os líderes políticos homens e os membros da Igreja católica.
A questão do aborto na Polônia está muito politizada nos últimos 30 anos — e, especialmente, nos últimos cinco. O governo, ao dar sinal verde para uma nova restrição na lei, brincou com fogo. Foi contra a maioria que forma a opinião pública polaca, que se opõe a novas proibições e prefere que os supostos casos de aborto de legal se ampliem, em vez de serem reduzidos.
Daí, vem a reação.
Os protestos contra a sentença do Tribunal começaram no dia 22 de outubro e continuaram de outras formas nos semanas seguintes: marchas de rua, bloqueios em horários de grande tráfego em entroncamentos importantes e manifestações em escritórios e em frente a casas de algumas personalidades importantes da direita. A maior concentração ocorreu no dia 30 de outubro, quando mais de 100 mil pessoas se uniram para bloquear Varsóvia.
A sentença do Tribunal chegou em um momento muito difícil para muitos setores da sociedade: com a pandemia de covid-19, o sistema de saúde a ponto de colapsar e previsões de recessão econômica, muitos grupos perderam a confiança em um governo que está distraído, intensificando sua campanha de ódio contra as pessoas LGBTI e mulheres.
A sentença do Tribunal chegou em um momento muito difícil para muitos setores da sociedade: com a pandemia de covid-19, o sistema de saúde a ponto de colapsar e previsões de recessão econômica, muitos grupos perderam a confiança em um governo que está distraído, intensificando sua campanha de ódio contra as pessoas LGBTI e mulheres.
Por esse motivo, se somaram aos protestos outros grupos, como taxistas, associações agrícolas, sindicatos e, de maneira espontânea, motoristas de ônibus e bondes urbanos. É importante mencionar que essas revoltas se ampliaram e chegaram às cidades menores, sobretudo em áreas conhecidas por serem a base política do PiS, como a região noroeste de Podlasie (Podláquia) e a região sul de Podkarpacie (Subcarpática).
Sabemos que, na Polônia, um país onde as organizações de mulheres lutam há mais de duas décadas pelo aborto legal, esta onda de manifestações foi de longe a que mobilizou mais gente. E também foi incomum por muitas outras razões. Em primeiro lugar, porque o ápice foi a raiva das mulheres, sentida de forma massiva, coletiva e transbordante, de forma parecida, por exemplo, ao movimento #MeToo. Essa reação emocional potente poderia ter sido resultado da frustração acumulada pelos contínuos passos do governo para limitar os direitos das mulheres.
Agora, a raiva das mulheres se desatou ao ver como o partido que está no governo proibia a prática de aborto em sua totalidade, sem aparentar qualquer respeito pelo processo democrático — a lei foi modificada sem debate público e isso constitui uma omissão do dito processo — e talvez também devido a que essa proibição é algo muito pessoal para muitas delas, porque se deram conta, mais uma vez, de que suas vidas são tratadas com total desprezo por numerosos homens a frente de cargos políticos.
Sabemos que, na Polônia, um país onde as organizações de mulheres lutam há mais de duas décadas pelo aborto legal, esta onda de manifestações foi de longe a que mobilizou mais gente. E também foi incomum por muitas outras razões. Em primeiro lugar, porque o ápice foi a raiva das mulheres, sentida de forma massiva, coletiva e transbordante, de forma parecida, por exemplo, ao movimento #MeToo. Essa reação emocional potente poderia ter sido resultado da frustração acumulada pelos contínuos passos do governo para limitar os direitos das mulheres.
Agora, a raiva das mulheres se desatou ao ver como o partido que está no governo proibia a prática de aborto em sua totalidade, sem aparentar qualquer respeito pelo processo democrático — a lei foi modificada sem debate público e isso constitui uma omissão do dito processo — e talvez também devido a que essa proibição é algo muito pessoal para muitas delas, porque se deram conta, mais uma vez, de que suas vidas são tratadas com total desprezo por numerosos homens a frente de cargos políticos.
Seja como for, essa raiva contra o governo respingou na Igreja católica — muitas mulheres protestaram nas missas de domingo, e algumas igrejas foram “decoradas” com grafites em sinal de protesto. E também se dirigiu contra líderes políticos homens e falsos aliados, que queriam apropriar-se da raiva das mulheres para seu próprio benefício político. Um exemplo é o movimento recém-criado e de corte bastante conservador chamado “Polônia 2050”.
O cansaço, a ira e a raiva absoluta foram bem refletidas nos slogans. Entre os mais populares, destacam-se “Cai fora” (Wypierdalać) e “vá à merda PiS” (J… PiS). Em todo o país, centenas de milhares de manifestantes, em sua maioria mulheres jovens, tomaram as ruas portando cartazes com dizeres como “Queria poder abortar o governo”, “Isso é guerra” ou “O inferno para as mulheres”.
O cansaço, a ira e a raiva absoluta foram bem refletidas nos slogans. Entre os mais populares, destacam-se “Cai fora” (Wypierdalać) e “vá à merda PiS” (J… PiS). Em todo o país, centenas de milhares de manifestantes, em sua maioria mulheres jovens, tomaram as ruas portando cartazes com dizeres como “Queria poder abortar o governo”, “Isso é guerra” ou “O inferno para as mulheres”.
Ao contrário do que se temia, o uso de linguagem vulgar não afetou o propósito da luta. Ao contrário, como a escritora e acadêmica Inga Iwasiów destacou: “Assim que começamos a ser vulgares, o outro lado começou a nos escutar”.
Além do mais, nos debates políticos do país se produziu uma autêntica mudança quase que da noite para o dia: organizações de mulheres com a All-Poland Women’s Strike, que coorganizou os protestos pelo direito pleno ao aborto, e a Abortion Dream Team, um coletivo de acompanhamento que ajuda as mulheres a abortarem em suas próprias casas, que eram consideradas “muito radicais” até para alguns setores do feminismo, e se converteram em um grande interlocutor nos debates políticos convencionais, e atraíram a atenção dos principais meios de comunicação. Agora já não são vistas como minoria radical ou extremistas que devem ser silenciadas para que as posturas supostamente moderadas do espectro político fiquem onde estão.
Mas o que realmente fez com que os protestos crescessem durante semanas foi a enorme mobilização de jovens e sua determinação. Gente jovem de todos os gêneros celebrou sua subjetividade política nas ruas, gritando palavrões ao governo.
Os que ficaram em casa, mostraram apoio a partir de suas sacadas, janelas e pela internet. O compromisso dos jovens, que com frequência são vistos como despolitizados e descomprometidos, foi uma surpresa. Sobretudo porque, como geração, cresceram em uma realidade social marcada por uma sucessão de governos, “progressistas” e conservadores — em função do apoio político da Igreja –, defensores da militarização e do nacionalismo.
Foi uma revelação ver massas de jovens, imunes e indiferentes à retórica disciplinadora de ameaça e medo do ministro da Educação, Przemysław Czarnek, que tentou intimidar os alunos e o professorado com a advertência de que aqueles que participassem das manifestações poderiam ser levados a juízo. Ou as palavras de Jarosław Kaczyński, líder do PiS, que chamou à “defesa da Polônia e das igrejas católicas” frente às forças que “querem destruir a Polônia” e buscam “o fim da nação polaca como a conhecemos”.
No cartaz preto, “Meu corpo, minhas regras”, a determinação e persistência da juventude são uma novidade e dão o que pensar a todos. Graças a ela, o partido que governa o país aprendeu uma lição amarga sobre o quanto seus métodos e sua retórica nacionalista estão desgastados, e o quanto seu partido está distante dos mais jovens — ou seja, de seu futuro eleitorado.
No cartaz preto, “Meu corpo, minhas regras”, a determinação e persistência da juventude são uma novidade e dão o que pensar a todos. Graças a ela, o partido que governa o país aprendeu uma lição amarga sobre o quanto seus métodos e sua retórica nacionalista estão desgastados, e o quanto seu partido está distante dos mais jovens — ou seja, de seu futuro eleitorado.
Além disso, o alcance dos protestos pode ter posto fim à ideia do monopólio do populismo de direita, algo sobre o qual o governo atual sempre se apoia. A narrativa compartilhada por grande parte da população, de que os direitos LGBTI+ e das mulheres são um ataque da “ideologia estrangeira” contra os “valores tradicionais” da Polônia pode parar de funcionar em vista dos recentes acontecimentos.
Essa nova onda de manifestações, suas palavras de ordem e sua estética podem ser um sinal de que a narrativa liberal de alcançar pequenas conquistas de direitos humanos, em particular os relacionados aos LGBTI+ e ao aborto, também mostra que a oposição progressista ao governo está desatualizada. Os partidos de esquerda, que apoiam abertamente os direitos LGBTI+ e o direito ao aborto — ainda que seu respaldo social seja de somente cerca de 10% –, poderiam beneficiar-se dessa nova realidade política se forem capazes de superar o estigma do pós-comunismo.
Mesmo com essa grande onda de protestos de rua chegando ao seu final natural, devido ao puro esgotamento de todas as pessoas envolvidas, os resultados da mobilização ainda estão por vir. Já estamos em 20 de novembro, e o governo ainda não publicou a sentença do Tribunal, o que significa que, na prática, a lei não mudou.
Além disso, no último mês, a All-Poland Women’s Strike ampliou suas demandas perante ao governo a outras áreas além dos direitos ao aborto: direitos LGBTI e das mulheres em geral, direitos trabalhistas, separação entre Igreja e Estado e independência total do poder legislativo. Agora mesmo, as organizadoras desse movimento se encontram construindo suas bases, de baixo para cima, para serem capazes de continuar a luta no futuro.
Texto: Magda Grabowska
Tradução: Gabriela Leite
* Magda Grabowska é socióloga e professora da Academia de Ciências da Polônia
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