quarta-feira, 13 de março de 2024

OS MONSTROS SÃO PESSOAS COMUNS

Cena do filme

Sim, assisti ao filme "Zona de Interesse"! Sim, acompanho diariamente na internet o genocídio em Gaza! Sim, leio todos os dias em diversos sites sobre os ataques da invasão russa!

E observo também, nos telejornais brasileiros, a proteção excessiva ao governo de Israel. Vejo o comandante das Forças Armadas Israelenses fazendo pronunciamentos sóbrios e comedidos, sempre com uma expressão natural. Assim como testemunho o ministro das Relações Exteriores de Israel, de maneira jocosa e irresponsável, criar piadas - os chamados memes - contra o presidente brasileiro Lula.

Tudo isso acontece com uma aparente tranquilidade!

Exterminar um povo, diga-se de passagem, não é privilégio exclusivo dos nazistas ou dos sionistas. No passado, com as bênçãos do Papa devasso Alexandre VI, os espanhóis católicos exterminaram as civilizações Araucana no Chile, Inca no Peru e Asteca no México. A única exceção foi a Maia da América Central, que já havia desaparecido da face da Terra.

Mas sim, assisti ao filme "Zona de Interesse". Confesso que fiquei intrigado com o título desde domingo, quando este filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2024 e o Oscar de Melhor Som de Johnnie Burn e Tarn Willers.

Em polaco, intitulado "Strefa Interesów", em inglês "The Zone of Interest" e em português tenho lido como "Zona de Interesse". Para mim, todos ambíguos, já que a divulgação do filme informa que se trata de uma família que vive além do muro do Campo Alemão Nazista de Concentração e Extermínio, na cidade polaca de Oświęcim, mundialmente conhecida como Auschwitz.

Cartaz do filme nos cinemas da Polônia

Fui encontrar no texto do jornalista polaco Łukasz Mańkowski, do portal onet.pl, a origem do título, "a 'zona de interesse' (do alemão Interessengebiet) que se referia à área de 40 km ao redor do Campo Auschwitz. Foi daí que, em 2014, o escritor Martin Amis escreveu um livro com o mesmo título.” 

Esse livro serviu de ponto de partida para o filme de Jonathan Glazer. O cineasta britânico buscou expressar sua visão sobre a crueldade do genocídio nazista ao reduzir a "zona" presente no título a imagens da vida cotidiana, apenas um registro trivial de uma determinada família privilegiada, desligada do mundo que existe ao seu redor.

O diretor Jonathan Glazer

O resultado do trabalho artístico do cineasta se traduz em sequências com um ritmo singular. Glazer, com a ajuda de uma centena de produtores e técnicos polacos, criou uma obra devastadora, vanguardista e, acima de tudo, penetrante. Sim, porque aquele andamento britânico de imagens calmas e belas, captadas pelo diretor de fotografia polaco Łukasz Żal, vai consumindo o espectador, que espera por um desfecho, no mínimo, violento.
Łukasz Żal

Apesar da estética marcante, do forte simbolismo e da constante tentativa de perturbar a área de conforto do público por meio de sons, ruídos, barulhos, gritos e latidos que ecoam ao longe, o filme é uma obra profundamente conectada ao presente.

Confesso que, durante a projeção, a vontade é sair da sala, pois aquele barulho surdo vai penetrando, incomodando...

- "O que estou fazendo aqui?"
- "Onde estão as imagens fortes dos crematórios, das câmaras de gás, dos fuzilamentos?"
- "Mas afinal, este não é um filme sobre o Holocausto?"

São perguntas que insistem em surgir na mente. E o diretor, com este filme aparentemente tranquilo, está fazendo uma acusação. Não apenas para os personagens do filme, mas para mim, para você que me lê.


A produtora polaca Ewa Puszczyńska

Ao retratar a indiferença do comandante alemão Rudolf Franz Ferdinand Höss e sua família diante do que está acontecendo atrás daquele muro de tijolos vermelhos, ele também está falando da indiferença de todos nós diante dos conflitos que assolam o mundo, como as mortes na Ucrânia e o genocídio de crianças, mães e idosos em Gaza.

O filme "Zona de Interesse" é apresentado como um drama familiar comum. A verdadeira mensagem emerge do que está em segundo plano, nos sons e na cuidadosa representação da banalidade do mal que o diretor encontra na dinâmica do cotidiano, na vida aparentemente comum dos monstros da humanidade.

Se não fossem os sons na abertura do filme, com o quadro claramente esticado e o título, não saberíamos que se tratava de um retrato cinematográfico do Holocausto.

Rudolf, Hedwig e seus filhos vivem próximos ao Campo de Concentração e Extermínio de Auschwitz.
 
O ator e cantor alemão Christian Friedel no papel de Höss

As paredes da casa dessa família alemã são literalmente as paredes da mais sinistra fábrica da morte. Enquanto o filme nos mostra crianças correndo no quintal verde, a esposa regando seu canteiro de flores, ou mostrando aos convidados o impressionante jardim que cultiva, também se ouvem sons surdos de sofrimento (tiros, gemidos, gritos) que ocorrem atrás daquelas paredes límpidas e claras. Não há nelas nenhum rabisco, mancha de mofo, ou sangue. Tudo é limpo e perfeito.

O horror está nos olhos de quem vê, amplificado pela música pulsante do compositor Mica Levi. Este é um filme que busca a irrepresentabilidade, ou seja, utiliza a linguagem cinematográfica para capturar o que parece impossível de apreender, impossível de transferir para a tela do cinema, da TV, ou mesmo para o pequeno espaço de exibição do telefone.
 
 A atriz alemã Sandra Hüller no papel de Hedwig Höss

O desejo evidente do diretor é retratar o holocausto em sons, a arrogância dos criminosos, a inconsciência e os motivos capitalistas por trás dos planos de extermínio.

A essência da "banalidade do mal", descrita por Hannah Arendt, é retratada nas sequências que enfocam o discurso sobre os negócios. Como na cena em que os nazistas estão discutindo os meios de melhorar o funcionamento do campo de extermínio para que o expurgo ocorra mais rapidamente e gere menos perdas econômicas para o Reich, ou naquela cena em que Höss ostenta o dinheiro que recebe por estar naquela zona de interesse.

Sem dúvida, este filme veio ocupar um lugar na atualidade, onde movimentos neonazistas, evangélicos pré-cristãos e sionistas dominam os discursos, as notícias e, em muitos casos, estão muito próximos de nós. Antigos amigos e familiares que, de uma hora para outra, se revelam como pessoas más, ignorantes e desconectadas do amor, onde só o ódio e a intolerância as movem.

Primo Levi escreveu: "Existem monstros, mas são poucos para serem perigosos. Os mais perigosos são as pessoas comuns que estão dispostas a agir sem fazer perguntas." 

SOBRE RUDOLF HÖSS

Ele nasceu em 1901 em Baden-Baden. Em 1929, casou-se com Hedwig Hensel, com quem teve 5 filhos.


Ele serviu, por quase dois anos, como comandante de Auschwitz. Ele foi um dos responsáveis por testar, e depois implementar, vários métodos de matança, entre eles a introdução do pesticida Zyklon B, para executar o plano de Adolf Hitler de extermínio.

Em 25 de maio de 1946, Höss foi entregue às autoridades polacas e para o Supremo Tribunal Nacional. Seu julgamento durou de 11 a 29 de março de 1947.


Em 2 de abril, foi sentenciado à morte por enforcamento. A sentença foi executada quando ele tinha 46 anos, no dia 16 de abril de 1947, na entrada do que fora o crematório 1 do campo de concentração e extermínio alemão nazista de Auschwitz I.


Texto: Ulisses Iarochinski

2 comentários:

Anônimo disse...

Não pretendo assistir ao filme, já temos tristezas iguais atualmente.

Anônimo disse...

E a pena de morte não melhora a civilização, a prova é que os neo-nazistas, extremistas e fundamentalistas se proliferam pelo mundo. Poucos não se calam.